quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Palavras e coisas

800px-Dead_Vlei_5 Não há emoção apenas naquilo que dizem conter emoção.

Naquilo que dizem traduzir as muitas razões dos séculos,

Nas doses de gosto conhecido,

No que já vem sorvido.

Me emocionam as palavras que não contêm emoção pela

significação,

As palavras brutas,

Insólitas.

Porque antes de serem palavras

Foram sentimento.

Mesmo a mais grotesca e áspera,

Foi um dia emoção

Até que, criando novas flexões  e novos sons,

Irrompesse intrépida pela boca aliviada.

 

por Sérgio Araújo

sábado, 25 de setembro de 2010

Ponta das Margaridas

1221103722q6NV8r1Levantou às 3, às 4 partiu na velha canoa costeando o lombo do leste, devagarinho, na flor da maré grande.
Olhando de esguelha pra não esbarrar em pesqueiro coberto, Biô cantarolava baixinho e remava crispando a água nos dois lados pra fazer rumo certeiro no cardume de tainha.
Rede pronta na proa, branquinha na garrafa, já distinguia o vulto cabeludo da Ilha do Medo quando o primeiro pingo bateu como um cascudo na aba do boné.
Olhou pra cima, pro breu do céu e recebeu outro pingo. Dessa vez acertou-lhe o olho direito lavando as remelas e clareando a visão pra aurora que avermelhava acima da proa.
Biô, tirando força dos braços magros e ressequidos de muitos verões, fez a “Margarida” deslizar veloz contornado o lombo e ganhando mar aberto.
De repente, o que era claro ficou escuro, o céu enturvou e o vento soprou água do mar nas narinas de Biô. Margarida rodopiava num samba de roda encachaçado quando um peixe voador raspou-lhe a orelha e um fio de sangue correu, cor de rosa, sobre a camisa encharcada.
Lá se foi o remo, a branquinha vazou, a rede escorregando pela beirada, parecia fazer seu trabalho de todos os dias, espalhando-se sobre a água com suas bóias coloridas.
Margarida bebeu água, Biô também. O vento gelado chicoteava seu corpo, a canoa empinava e mergulhava na vaga: foi uma, veio a segunda, na terceira vez cuspiu Biô, mergulhou e não mais voltou, partida ao meio por um raio certeiro.
às 12, na praia deserta: restos de rede, tralhas de pesca, pedaços de pau, uma flor, um vidro de perfume e um rastro de peixe grande que se estendia da beira da água até o corpo de Biô.
Quem viu, contou do sorriso nos lábios do pescador e do cheiro forte de alfazema que se espalhou pela praia com a brisa leve da Bonança.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Scriptorium

scripAlém das escadas, soluções inimagináveis para todos os mistérios sob o teto de carvão. Abóbada longínqua desde o piso ordinário, ensebado; caprichosamente sujo.

A porta de saída, na verdade, fora a próxima cena; conta da Japamala retornada na infinitude da forma.

Não é o vazio das ruas, nem suas gentes toscas que agora vejo. De perto, grotescos sulcos impregnam a superfície da tela e nela está marcada a entrada do scriptorium.

Olusco não é o nome, mas ocluso. Este é o termo que em magenta se insinua no traçado pueril das letras pintadas na tábula  inclinada pelo peso do pincel.

Agora entendo a sinuosidade das escadas, a incerteza dos sentidos na experimentação do tato, a fuga para além das portas, o reconhecimento dos rostos em cubos.

Ocluso! – Sussurrou novamente o zelador já no vazio distante – enquanto repito incessantemente, como um recado que devo transmitir e não posso esquecer: scriptorium ocluso!

Caminho não sei se para dentro ou para fora, não vejo portas. Agora é o vazio e o frio das paredes que roçam meu corpo, regelando os ossos.

Corro como um alucinado e no desvario tudo se mistura: o mosaico do piso, as portas abertas, as vozes misturadas ao assobio do vento, a cabeça da moça da loja e seu cérebro minúsculo, a muralha, o tempo.

Com um rangido, uma porta abre-se diante de mim. Sob uma viga sustentada por duas colunas romanas: a porta do scriptorium.

 

por Sérgio Araújo

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Abrigo

≈_Half_MoonMergulhou na escuridão como quem adentra um abrigo na tempestade.

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Silêncios de entreletras

tumblr_l6zuyuu9jQ1qziwcjo1_500 - Está tudo bem com você?

- Como vai passando os seus dias?

Sabe, eu caminho nas ruas e olho para trás, de vez em quando, só para me certificar de que não deixei rastros.

Não, não me leve a mal. Não procuro me esconder nas multidões. Só não consigo deixar de ser coletivo.

Sabe, eu sou muitos e esta multidão, de certa forma, me protege.

Ontem, um sujeito me achou. Ele me viu quando eu cruzava a calçada e um raio de luz bem fino iluminou o botão da minha camisa.

Ele limpou os olhos, franziu as sobrancelhas e encarou o vazio que deixei no espaço da rua.

Às vezes ecoo como asa de libélula e o som se propaga como se fosse numa ruina grega.

Não importa. Vou meter meus poemas nos bolsos e fazê-los cair um a um; palavra por palavra; todos os silêncios de entreletras que deslizarão sobre as pedras para murcharem na areia fina.

Será minha pista. Minhas pegadas para serem seguidas.

De qualquer forma, está tudo bem.

por Sérgio Araújo