sábado, 26 de setembro de 2009

Nuvem

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O código expresso

Impresso

Virtual

Sem identidade

Só me reconheço

No discurso possível

Passível

Inautêntico corpus

Generalizador

O que eu tenho a dizer

Arranha o disco rígido

do meu computador

Eu me estranho

Eu não sou eu

Sou aquilo que me generaliza

Nuvem

Neblina

Perspectiva.

 

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Oitão

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Era um caminho para o céu. Não. Não era um caminho, mas um túnel do tempo, uma passagem secreta para outra dimensão. Podia ser tudo isso se não fosse um simples oitão; estreito como deve ser um oitão que se preze. Aquele vão comprido e apertado tinha a sedução das coisas proibidas. Eu sabia que não podia entrar ali, mas queria aquilo como desejava aquela bola branca da promoção da Bombril.

Aquelas bolas brancas com a logomarca vermelha do fabricate estavam nos sonhos da molecada. A TV convencia e a gente pedia aos pais para comprar. Menos eu. Meu pai tinha um armazém e eu passava as tardes a desmanchar pacotes, escondido. Juntei cinco vales-brindes. Um cupom azul que dava direito a uma bola, trocado nas lojas Mesbla. Foi assim que eu consegui jogar em todos os bábas que se formavam depois da escola.

O campinho ficava em frente ao oitão e, volta e meia, a bola rolava em sua direção, escorregava pela pequena vala que parecia um leito seco de rio a se estender oitão adentro. E era assim nos tempos de chuva, as águas escorriam entre as paredes para desaguar no quintal de dona Miúda.

A bola teimava em correr para aquele lado. Além do claustrofóbico vão, naquele lado do campo também ficava a casa de Zé Amarelo, conhecido rasgador de bolas.

Naquele dia, a bola rolou devagar até perder-se oitão adentro. E lá estava eu, espremido entre as suas paredes. Sufocado, sangrando, em desespero, imaginando ficar preso ali para sempre, vendo as paredes comprimindo o meu corpo, o céu baixando, o chão fugindo e o ar faltando.

Foi ai que a vi, Sônia morena, parada no fim daquele túnel, aquele insuportável, longo e escuro túnel em que o oitão tinha se transformado. Não era a bola, esquecida no sufoco da situação; era a coisa mais linda que até então eu tinha visto. Como um holofote, um raio de sol iluminava a sua face e os seus cabelos que caiam displicentes sobre os ombros.

Compenetrado, como um herói dos seriados vespertinos, lancei-me para fora como que saindo do ventre materno, um parto difícil e exagerado nos movimentos para conferir valentia e superação diante do olhar enternecido da donzela.

Com o coração aos pulos, alcancei a rua, depois o campinho e nunca mais a vi. Nem a minha Sônia, nem a bola da Bombril que foi devidamente rasgada pelo implacável Zé Amarelo, tio da donzela encantada e dono do oitão das minhas desventuras.

 

por Sérgio Araújo

Crônica publicada em primeira mão, a pedido do meu amigo Wellington de Cachoeira-Ba, no blog http://letoooutroolhar.blogspot.com/

domingo, 20 de setembro de 2009

Releituras

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Cá estou embriagado de verde e suspenso no azul celeste que invade todas as manhãs o meu quarto infestado de palavras. Muitas antigas, umas tantas rebeldes e outras fantásticas como uma ilha perdida ou uma cidade do sol.

Muitas histórias que não escrevi, mas gostaria de Tê-las escrito. A noite fria sob um barco velho na beira do rio, os corpos solidários, o belo nascendo do feio, o particular ampliando-se nas paixões comuns a todos e em todos os lugares.

Viajo solitárias léguas num caminho sem fim para esperar numa estação o meu trem expresso. Sem pão e tostão, vagando no universo das minhas fantasias onde cidades se erguem após as colinas e se estendem pelos campos com seus campanários e edifícios alvos refletindo a luz calma das manhãs.

Admirável é a aurora que se anuncia ainda na torpeza do dia, assim como escolho a leitura na minha estante pela antevisão que o conhecimento da obra me permite.

Eu reconheço as palavras que injetei nas veias e entranharam-se em mim, em cada célula, em cada átomo que agora, aos poucos, vão revelando os processos e eu posso lê-los.

 

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Capistrano e o vento

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Capistrano, filho de Eliodoro e neto de Capistrano. Esse era seu orgulho. Lá para as bandas do Oricó não havia riqueza maior que uma descendência contada e recontada pelas honras do trabalho honesto. Sua força vinha daí, do amor de Madalena e do filho Elinho.

Naquele sábado, voltando da feira, Capistrano levava os pedidos de Madalena; um doce pra Elinho e uma canseira danada. Andava para poupar Cipó que já suportava dois panacuns cheios das coisas que comprara com o dinheiro do seu comércio.

- Eia! Cipó. - num grito entrecortado por um assobio - vamo, vamo!

A estrada se alongava perdida entre os cacaueiros que a margeavam. O sol estava a pino e o jumento cipó, de vagar, marchava com os olhos fechados e a cabeça baixa.

Caminhava há duas horas e ainda faltava mais duas para chegar em casa. Era um pedaço de estrada de terra, um tanto de roça de cacau, outro de manga, o último trecho de mata e a velha casinha de taipa se mostrava em sua humildade barro e palha.

A estrada era varrida pelos ventos de agosto. O farfalhar constante era às vezes tão intenso que amedrontava. Dava a nítida impressão de que a floresta ia engolir a todos como uma bolha verde e revolta com sua boca enrugada e amarga como a casca do pau d'arco.

Capistrano ia cantarolando em pensamento as velhas canções da Vó Minervina e, vez por outra, interrompia a cantoria para relembrar os causos de pé-de-fogueira em noite de lua, com a família reunida no terreiro varrido de véspera; prato de aipim com carne e a caneca de café pilado com cravo e rapadura.

Nessa distração ia Capistrano e nem reparou quando à sua frente, um jenipapeiro fino e alto envergou profundamente sobre a estrada soltando folhas como fogos de artifício na noite de São João.

O vento roçou o corpo de Capistrano e o fez estremecer! Sentiu um frio repentino e agarrou-se à cangalha de Cipó que cambaleava com as orelhas em riste. O vento cresceu como uma muralha à sua frente e despejou os restos da mata com seus cheiros e suas migalhas sobre seu corpo lento e insignificante.

- Eia, Eia. - tentava fazer Cipó obedecer enquanto puxava-o fortemente pelo cabresto.

Cipó fincou as patas no chão de terra e não arredava. Agora eram as compras que começavam a cair quando Cipó empinava ligeiramente para se livrar da fustigação. Foram as panelas, as fazendas, açúcar, café a garrafa de Jacaré.

- Velei-me meu São Benedito! Sussurrou apavorado.

- Eia, Cipó! Vamo, vamo... - implorava como se sua vida dependesse disso.

Cipó empacou e Capistrano agarrou-se a ele como se fora sua única salvação. O vento ficou mais forte a ponto de derrubar uma árvore a poucos metros dos dois. O estrondo fez Cipó relinchar e pular sem sair do lugar e, pulando, derrubava o conteúdo dos panacuns que rolavam estrada a fora.

O horizonte tinha sumido numa polpa marrom e o que era estrada virou céu e o que era céu virou estrada, o vento soprava de baixo pra cima, Cipó com as orelhas no chão, bufava e Capistrano flutuava sobre a Cajazeira que rodopiava e se encontrava com a estrada, ou era o céu? A casa de palha, o fogo as lembranças de Madalena, Elinho na escola, minha velha Minervina, meu pai Eliodoro, São Benedito rogai por nós. Bola de sebo Capistrano na idade de Jesus não pode morrer sem criar Elinho, Cipó já vai alto, o perfume de Madalena, minha sandália, aquele toco...

Aos poucos, deu-se a calmaria! A estrada virou estrada, o céu azulou, Cipó perdido nas entranhas do horizonte e Capistrano dormindo. Descansava, a final, Sob as folhas que ainda caiam, lentamente, sobre sua cabeça recostada no velho toco do Jequitibá.

 

Por Sérgio Araújo.

Foto: Galeria de Voyageur Solitaire-mladjenovic_n -flickr

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

No meu caderno


O brilho das cores, festival.
A garota bonita e sua sobra no muro.
Aonde vai?
O cadarço do meu sapato,
O Cérebro do poeta,
A tabuleta que anuncia:
Compro, vendo, troco,
Não me importo.
Ligue pra mim!
O telefone caminha a seu lado.
Hoje voaremos sobre a avenida
Repleta,
solene na valsa dos rostos, em cubos.
Quero te achar
Depois da partida sem despedida,
Dando voltas com os olhos
E tudo  o que gira
Está sob o céu de ontem,
Dentro do meu caderno de capa verde
Que agora é seu.
É meu pretexto
Pra continuar te encontrando
Nos textos que escrevo.
por Sérgio Araújo

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Leste

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Extenso e estático pórtico

Genérico, caótico.

Guardião do mar, insular.

Do leste o vento

dourado.

Céu mais lindo,

Matutino na primavera.

Barro secular

Escravo no tempo e no lugar.

Erodido em arquitetura evolutiva,

Cativa,

Cooperativa.

Ostra, astro rasteiro

Certo,

Na incerteza dos dias.

 

por Sérgio Araújo

sábado, 5 de setembro de 2009

Atrás do Trio Elétrico

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Desceu do ônibus no Campo da Pólvora, em pleno sábado de carnaval. O tênis novo, bermuda estampada com bolso secreto pra guardar dinheiro e documentos, camiseta regata e três doses de conhaque só pra turbinar a entrada na avenida. O Trio Elétrico dava a volta no Sulacap enquanto Reginaldo deslizava São Pedro abaixo. Ele e uma multidão de mortalhas molhadas, rasgadas, amarradas nas cinturas, arrastadas no chão lambuzado de urina, cerveja e restos de folia.
Reginaldo sonhava encontrar Soninha. Tinha marcado um lero com ela nas imediações do Clube de Engenharia. Ali rolava uma galera legal: a turma da esquerda, alguns roqueiros que não foram pro festival, pra praia ou ficaram em casa ouvindo Black Sabbath; os intelectuais que não pulavam e passavam todo o carnaval discutindo com a turma da esquerda; alguns populares (aqueles das crônicas nas edições de domingo), universitários, bichos-grilos turbinados e, é claro, muita mulher bonita (dos outros).
Aquele pedaço era o local mais quente do carnaval no início dos anos 80. Por ali passavam quase todos os trios e trecos que alegravam a galera. Reginaldo fazia a ponte: um pé na Praça e outro na barraca de Valdir para uma cerveja gelada e uma parada pra cantar as meninas e "se armar" pra mais tarde.
Naquele dia tava tudo certo. Soninha ficou de lhe esperar na mureta do Clube, em frente à barraca de Valdir e nada poderia dar errado.
Enquanto passava por São Bento, Reginaldo ouvia os acordes de Dodô e Osmar na Carlos Gomes e pensava em Soninha lhe esperando na mureta: latinha de cerveja numa mão, um cigarro na outra, os cabelos dourados na réstia do sol que morria na ilha, vermelho.
O Sulacap imponente derramava gente por todos as janelas. Pro lado da Rua Chile, as luzes acabavam de ser acesas e iluminavam restos de Gandhis, aqui e ali, como contas brancas que escapuliram dos colares dos Orixás.
Reginaldo dobrou a esquina. A multidão enchia a rua estreita como sardinha na lata. Empurra pra lá, empurra pra cá e Redginaldo entrou na onda. Não mais andava, era levado numa alegre correnteza que vez por outra se transformava num furacão onde tudo rodava, os pés quase não tocavam o chão e as mãos só tinham lugar acima das cabeças que passavam em profusão. Não eram apenas cabeças, eram braços, rostos suados, latinhas, cigarros acesos, peitos, mãos nos peitos, loló, ladrão, capacete de polícia, pisão no pé, dedo no olho, sovaco na cara e um milagre pra sair dali antes da chegada do próximo Trio Elétrico.
Quase esmagado contra a porta de ferro de uma loja de passagens aéreas, Reginaldo avistou Soninha em cima do muro do Clube de Engenharia. Não se importava mais com os pés encharcados na poça de mijo nem com o odor que exalava da mistura dos perfumes e cheiros da multidão que impregnavam seu corpo molhado de suor. Lá estava ela, linda, de shortinho azul, top colorido e uma flor no cabelo.
Soninha dançava. Não! Não era dança. Era uma coreografia, ela pairava como Francesca de Rimini sobre a multidão que imitava os movimentos de um cavalo mecânico em ritmo acelerado. Seus cabelos escorriam sobre os ombros, os olhos fixos no alto do Trio, as mãos levantadas.
Reginaldo mergulhou na multidão como se estivesse no Porto da Barra. Queimou os cabelos moldados com óleo de coco da morena dos Pernambués com o seu cigarro, atropelou o maluco que cheirava loló e nem se importou, tropeçou numa muquirana e, por um instante, pensou não poder transpor a barreira das bundas rebolantes e dos socos dos malhados. Mas lá estava Soninha e estava perto. Só mais alguns metros.
Reginaldo foi cuspido pela multidão contra uma pilastra do Cine Bahia. Atordoado, caminhou apertado contra o muro a tempo de ver Soninha em cima do Trio, sorriso amplo a caminho do Campo Grande.
Pra Reginaldo a decisão: lavar as mágoas com as cervejas de Valdir ou se deixar convencer pelo refrão que balançava o chão da Praça na voz de Caetano: "atrás do trio elétrico, só não vai quem já morreu".
 
por Sérgio Araújo

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

micro-blogging pro(vocativo)

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Segundo Schiller, a estética ( como espaço de realização criativa) é "o estado mais fértil com vistas ao conhecimento". Declara: "somente aqui nos sentimos como arrancados ao tempo; nossa humanidade manifesta-se com pureza e integridade, como se não houvera sofrido ainda dano algum pelas forças exteriores". É justamente neste intervalo criativo e também reflexivo que o poeta, carregado de realidade, adquire o distanciamento necessário para a produção da sua obra liberto das relações fetichizadas que formam a pseudoconcreticidade que o cerca.

Este distanciamento, nada mais é do que um aconchego ao espaço da criação artística. Porque é justamente na superação da contradição homem repetidor X homem criador, que o poeta realiza um salto qualitativo necessário à produção de novos conhecimentos em forma de arte.

É criando que o homem se objetiva. Segundo Marx: "o homem não se perde no seu objeto quando este se torna para ele objeto humano". Daí, a importância da criação como objeto de humanização e reflexão sobre a realidade para a construção de uma nova realidade.

 

por Sérgio Araújo