segunda-feira, 29 de março de 2010

Da natureza das coisas

Image by Jef Safi

Fazia-lhe referência, frequentemente, para confirmar um pensamento. “Força e Matéria”, de Ludwig Büchner. Era uma questão de gratidão  ao mestre e, ao mesmo tempo, lhe permitia um inebriante orgulho intelectual que procurava não disfarçar e deixava que o percebessem como um leve ar de superioridade.

Era absurda a incapacidade deles em compreender a verdadeira identidade das coisas. A Matéria é primordial. E, ao demonstrar isso, recorria a Demócrito, Heráclito e Epicuro com uma destreza admirável e numa oratória cheia de artimanhas dialéticas, verdadeiras armadilhas eruditas.

Até que ela apareceu em sua vida. Teóloga,  católica praticante, devota de Nossa senhora de Fátima e estudiosa das obras probatórias de Santo Tomás de Aquino.

Ela era doce. Cultura recheada por longas visitas aos santuários europeus, museus e relíquias do mundo antigo patrocinadas pela riqueza cacaueira da família. Fazia palestras em centros sociais e comunidades de base onde espalhava como confetes coloridos, o seu tomismo cheio de fé e revelação.

Nas noites de frio, após um longo beijo apaixonado, enroscavam os pés por baixo do cobertor e sonhavam. Ela via-se envolta por elétrons, prótons e neutros numa coreografia minimalista, a bailar no universo em expansão. Ele sonhava recitando de cor a Suma Teológica, embriagado, abraçado com Tomás de Aquino numa taberna medieval.

 

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 25 de março de 2010

Forma

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Gosto das formas.

A superfície exata,

O ângulo do retângulo.

A forma é mais que aparência,

É essência tátil

E retrátil.

O agudo, o rombudo, a bolha.

A forma é antecedente.

É o conteúdo insurgente.

[A pedra de marte

É a mesma no meu quintal.]

A forma não é forma, o seu modelo,

Morfeu adormecido.

A forma é o oposto do vago,

É rebento inconteste da materialidade.

A forma

Forma.

Sérgio Araújo

sábado, 20 de março de 2010

Mínimo

324212502_e9c5d52890 Tento te achar

Na ponta dos pés

Sobra as cabeças da multidão

Olhos, mãos,

Sonhos e desencontros

Repetições

Espelho

De repente, num lance

Relance

Você em minha frente

Tateando as teclas do piano

Mínimo

Mi.

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 18 de março de 2010

O homem velho

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Procurando “O direito ao ócio” de Paul Lafargue, ele tombou o livro que se escondia, estreito que era, entre o “Ócio” e o “Capital”. Era um volume de bolso editado nos anos quarenta, com tiragem limitada, impresso em papel Leorne e rubricado pelo editor.

Nada de excepcional, posto que sua estante abrigava obras adquiridas no velho “Sebo Brandão”. Todavia, aquele exemplar lhe chamou a atenção. Não se lembrava dele, com certeza não o tinha comprado e muito menos lido.

“Um homem velho”, de Frederico Guilherme Framet, tradução de Joaquim Pinto Costa. Editado em Lisboa, o livrinho tinha a arrogância das grandes obras. Mas quem seria esse tal de F.G. Zamet? E o seu personagem, o homem velho? Não parecia um tratado de psicologia nem tampouco de fisiologia. Tinha páginas a menos que a conta necessária para tal empreendimento.

Era um pequeno conto, com certeza! Estava disposto a se deixar levar pela narrativa, penetrar no universo misterioso de um autor sobre o qual nada conhecia.

Abriu o livro como se abre aqueles livrinhos de “pensamentos do dia” e leu a esmo: “não compreendo por que julgais ilegítimo o entusiasmo que não morreu com o tempo. O mundo está cheio de pessoas cuja casca áspera e rugosa denuncia  a passagem do tempo e que conserva o viço que impele o seu querer. A morte da semente é a vida do broto”.

Leu sem parar o velho e insignificante livrinho achado espremido entre gigantes.

 

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 12 de março de 2010

três por quatro

55434692_b406286e38Desceu do ônibus na pracinha do terminal. À sua frente, petrificada numa pequena colina, erguia-se impávida uma capela centenária. Escorregou no asfalto tingido pelo óleo dos velhos motores das Marinetes.

Era o primeiro dia de aula na capital. O olhar desconfiado de garoto do interior registrava tudo em lances tímidos e inquietos. O medo de chegar atrasado, de errar o caminho, de ser aceito. Enfim, o desconhecido tem cheiro de fumaça, café torrado e perfume de mulher.

A foto depois da aula,  a foto depois da aula… Ia repetindo enquanto caminhava orgulhoso por estar ali. Era uma nova vida afinal. E ali estava. Sozinho. Por sua própria conta e risco transitando entre desconhecidos, ambulantes, sorrisos alheios, garotas na fila e, provavelmente, os batedores de carteiras de quem tinha ouvido falar nas preleções da Tia Zulmira.

A foto na volta… A camisa branca com o escudo azul. Calça azul marinho, sapato preto. Tudo tem o seu sentido. O dele era o estudo. O conhecimento que lhe fora negado pela ignorância dos interlocutores adultos, o que não tinha nos livros lidos, o que nem os livros sagrados explicavam, doravante estariam provados e escritos com esferográfica no caderno de dez matérias.

Na entrada, o portão de ferro rangendo abria espaço para um pátio de pedras portuguesas bem diante do edifício neoclássico que se insinuava austero, como deveria ser a casa do conhecimento. A escola da capital.

Ninguém reparou na figura tímida que se encolheu numa cadeira de canto e ficou a saborear as novidades. Escolheu amigos, adivinhou os nomes de alguns, criou histórias que se passavam além daquele momento e se apaixonou pela menina de óculos e cabelos negros.

O som da sirene interrompeu a aula que invocava histórias antigas. Esperou pelo vazio da sala para admirar as pilastras magníficas, os móveis escuros, o chão de cerâmica com motivo antigo. Saiu lentamente e novamente a lembrança: a foto.

Do alto da ladeira avistou um lambe-lambe. Sentou-se num banquinho e reparou no balde para lavar as fotos, os rostos desconhecidos que estampavam as laterais da velha câmera. Será que ele seria mais uma daquelas fotografias? Não importava. Era fácil ser anônimo naquela cidade.

Atenção! Pronto. Seis faces idênticas em três por quatro para provar que ele estava ali. Não era aquele que há pouco brincava de cowboy com os amigos e distribuía tiros de espoleta imitando a rudeza dos vaqueiros do Faroeste. Era agora compenetrado. Um objetivo novo que começava a ser conquistado ali, naquela hora e naquele lugar.

Um leve sorriso era visível na foto que se queria séria. Guardou a meia dúzia acomodada num canto quadrado de envelope de carta. Enfiou as mãos nos bolsos e penetrou na massa colorida que atravessava a rua na faixa de pedestres.

 

por Sérgio Araújo

 

domingo, 7 de março de 2010

Cosmonauta

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A xícara de café refletia na superfície escura e brumosa da bebida, a luz difusa da manhã. Os braços apoiados sobre  mesa contrastava com a alvura impressionante da toalha.

Não havia coisa que pudesse ser descrita para além desta cena. Um estranho e imenso vazio. Era como uma tela negra em cujo centro projetava-se aquela composição bizarra e constrangedora.

Da mesa podia-se ver apenas a metade ocupada, a outra metade parecia ter sido apagada como se apaga um desenho qualquer usando uma borracha escolar.

Era um desenho infantil, porém caprichoso e revelador de um talento inato e ainda um pouco imaturo. Parecia feito a lápis numa técnica em que  a representação principal vasa, na própria brancura do papel, em contraste com um fundo matizado. Aqui, um fundo escuro em grossas camadas de lápis de cera.

Se havia cor para lá do preto e branco eram as ranhuras que, amareladas, vestiam um corpo humano que se sobrepunha à mesa e que também fora apagado nas extremidades.

Insinuava-se um céu que não existia no desenho. Podia-se perfeitamente imaginar as estrelas brilhantes, restos de nebulosas, pequenos planetas distantes e alguns sóis com brilho intenso por trás dos panos enevoados das galáxias.

Num canto, dissimulado pela intrincada trama negra, um vulto prateado flutua como um cosmonauta à deriva no espaço infinito, rodopiando até sumir na margem próxima do papel.

 

por Sérgio Araújo