quarta-feira, 28 de abril de 2010
O tempo não passa como se pensa
O tempo não passa como se pensa.
Ele para nas tardes cinzentas
Quando, olhando o horizonte,
Ouvimos os sussurros da brisa ligeira.
Sentimos o tempo que diz:
Ei, espera que vou te mostrar:
Olha pra mim!
Podes ver-me na réstia de sol
Sobre o muro?
No pássaro que canta acolá?
No inseto traquinando amiúde?
No som de um alaúde?
Olha pra mim
E murmura aquela cantiga
Aquela, da moça do conto de Maupassant.
Repara!
Escuta, olha, sente.
É como extrair som das teias,
Soa sublime e quente como um colo.
Olha pra mim
E me diz de si
Que eu sou todo ouvidos.
Intenta tocar-me
Nesse jogo de pega-pega.
Olha pra mim
Que te mostro coisas sem fim.
Coisas que brilham no jardim,
O violino da valsa,
A cigarra
E a traça perdida na parede branca.
Às vezes o tempo para
Na música que nos embala
E nos faz pensar
Que apenas blefa
Quando enruga a face lisa do artista.
por Sérgio Araújo
sábado, 24 de abril de 2010
Desfiladeiros
A parede da pedreira
Que não existe mais enquanto parede,
Outrora sentiu o vento acariciar [como aço]
Cortando a face da pedra.
Agora não é mais dura,
Não sombreia mais o pó das tardes
E eu não sinto medo da altura.
Não sonho com escaladas e desfiladeiros.
Não brinco mais
Quando a chuva vem em grossas tranças
Formando laguinhos de sujar pés.
O sol não aquece a parede de pedra
Até secar o galho preso na fenda
E eu não posso quebrar o galho
Entre os dedos,
Sentir o pó da madeira.
A parede da pedreira não é mais de pedra,
É de memória.
Seja lá de que matéria for,
Eu não brinco mais na sombra da pedreira.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Entre o ser e o nada
Li o poeta que cantava a lua.
E como cantava.
Na margem do rio,
No horizonte,
Na fonte.
Queria também cantar a lua.
[La luna]
Sobre a espuma do mar,
Vertigem na escuridão.
Ciência e mistério
No espanto do primeiro homem.
Na beira do abismo,
Na noite fria,
Perguntas sem fim
Entre o ser e o nada.
por Sérgio Araújo
domingo, 18 de abril de 2010
O ilustre desconhecido
Observava tudo ao seu redor com a argúcia de quem investiga um crime ou um fenômeno obscuro. Naquela sala podia passear com os olhos pelas ações e reações dos presentes.
Não deixou de notar aquela pessoa que parecia estar pouco à vontade. O que lhe incomodava era um livro. Sim, um livro que, a julgar pelo modo como se comportava, parecia ser um ilustre desconhecido.
Não tinha aquela intimidade de leitor dedicado. Chacoalhava para lá e para cá como se fosse o livro, uma andorinha desvairada. Era um objeto incômodo. Parecia que o volume ardia em suas mãos diante da maneira como se livrava constantemente do objeto.
Levantou-se, em determinado momento, e o fechou de vez. Com um ar de repulsa empurrou o livro para longe e requebrou como se ouvisse um pagode, desses que fazem sucesso no carnaval da Bahia.
por Sérgio Araújo
sábado, 10 de abril de 2010
Panorama
Perscrutando os silêncios da minha autonomia.
Meus olhos internos, panópticos,
Percorrem os cantos
Desta prisão panorâmica.
Minha liberdade é uma mentira
Exaurida nas páginas amareladas da história.
Minha vontade
É um jogo de dados.
Sérgio Araújo
segunda-feira, 5 de abril de 2010
Lá fora
As nuvens pareciam pesadas demais para poder flutuar acima de todas as coisas. O chão sequer sustentava as carapaças ancestrais, ao léu, soterradas no Humo.
Como um retrofoguete, um foco de luz acelerou sobre sua cabeça e ele curvou-se feito artista ovacionado pela platéia da Avant-première. Lá fora não há proteção. O palco é vasto e profundo. Nem a trufa nem a fruta, o fel é o sabor.
Ofuscado pela luz intensa ele vagueia intruso na cegueira alheia e desinteressada. O palco gira e a dança dos rasos irrompe das cortinas rotas como um tropel sôfrego sobrepondo as máscaras a cada salto.
Agora ele é de foz em fora, soluto na imensidão unânime da sua espécie. Não há retorno, apenas o entorno; engenho lúdico que impele a súcia para o vazio.
Meditabundo, a um canto se acomoda. Seu pensamento recolhe as reticências da história e as compila na trama do córtex. Queria poder secretar os juízos e, como panacéia, pulverizar a multidão fazendo arco-íris numa manhã de primavera.
por Sérgio Araújo (foto: deviantart by senicar)