domingo, 12 de julho de 2009

Azul

margarita azul frontal. flickr. alfaneque
Capítulo XXII
O anúncio fixado na porta de entrada da casa de V escrito em fonte Old English informava, solenemente, a chegada do casal, em lua de mel há uma semana.
Pela porta semiaberta penetrava um réstia de luz do sol que imprimia, em tons dourados, um triângulo retângulo no chão de madeira polida.
Sentada, bordando um pano qualquer para matar o tempo, V suspirava enquanto pensava na recepção: flores do campo, cheiro de jasmin, música alegre, bebida farta e borbulhante, salgados e doces, ah! muitos doces.
Iluminado, o jarro de porcelana verde refletia a luz do sol em raios frios e animados projetando na parede uma infinidade de pequenas partículas multicoloridas.
V não era bonita como a noiva. V tinha sonhos românticos como toda jovem de sua idade. Mas V não era bonita como a noiva. Era inteligente! Na verdade, era muito mais inteligente que sua irmã. Não fosse pelo "defeito", como costumavam dizer referindo-se ao fato dela não poder andar, coisa de nascença, V certamente seria a preferida do, agora, marido de sua irmã.
Em sua insignificância aparente, ela era extremamente produtiva. Além dos cuidados da casa, ela escrevia. Amante nenhum nesse mundo teria escrito cartas e poemas tão belos quanto os que V moldava com lágrimas, na matéria indiferente do papel, em suas eternas noites de insônia.
V é tão jovem!
Mesmo que os verões esbanjassem claridade e velocidade às vidas daquela casa, V era inverno! Não que deixasse a alguém perceber a sua tristeza, ela simplesmente congelava em sua solidão enquanto ria e conversava sobre os dias e as coisas. No seu exílio, criava. Escrevia sobre vales verdes e serenos, sobre montanhas cujos picos alcançavam as nuvens e as águias faziam ecoar seus gritos pelos ares, descrevia terras imaginárias, lagos tão extensos, oceanos tão profundos, pessoas tão belas e boas quanto ela.
V é tão bela!
Bordando, ia criando. Criando uma festa de casamento, um amor delicado, uma figura que escapava do seu pensamento toda vez que tentava vislumbrar um rosto, uma mão, cabelos ao vento, sol no rosto, sorriso. Via sem detalhes, como quem adivinha. Mas, mesmo assim, ela queria poder dizer que amava, que sonhava e vivia.
Não importa se eram tantos os presentes que enchiam o seu quarto de uma graça comprada aqui e ali, sem identidade, apenas coisas brilhantes, felpudas e sonoras. V queria viver para além daquele quarto e sentir-se plena nas coisas do mundo.
V é frágil!
Diluindo a triângulo e espalhando luz por todos os cantos da sala, entra o casal em plenos sorrisos e conversas. Acorrem todos, o som se espalha como a água sobre a toalha da mesa, reluzem os metais, gestos e frases, palavras e respingos
Distante daquilo tudo, lenta e silenciosamente, a mão escorrega sobre o peito e repousa suavemente sobre o pano. Fechados os olhos, V agora jaz, pequena flor sobre uma rocha bruta.
Fecho o livro e vou dormir, sereno, como uma melodia de Bossa Nova.
 
por Sérgio Araújo
foto: flickr - alfaneque

Um comentário:

  1. Greetings

    It is my first time here. I just wanted to say hi!

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