domingo, 29 de agosto de 2010

Roteiro


Um roteiro dentro das palavras.
Sempre tenho dessas coisas de dizer assim:
Como se já soubessem,
Como se a conversa tivesse iniciado antes
E já estivessem a par do assunto.
Eu corro com as palavras
Num roteiro implícito.
Deixo que as cenas se percam
Na integridade do termo
E termino, interino, transliterado.
As palavras, coisas que são,
Estapeiam os atônitos interlocutores.
E eu vou recriando o meu roteiro
Com palavras destoantes.
Não preciso seguir a turba,
Preciso de uma tuba, uma tralha qualquer,
Uma metrapalavradora cuspindo letras
No seu coração banal.

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Eu vim te ver

3177959130_26972c074d_mEu vim te ver.

Ver as cores que te dei naquele dia ensolarado,

Os cantos dos olhos quando você sorri.

Vim sincronizar sua voz com os ecos na memória,

Repetir a nossa história.

Vim andando na trilha que deixei,

Relendo os versos ao acaso.

Vim sem tempo pra ficar,

Sem hora pra sair.

Vim assim:

No pretérito perfeito,

Desse jeito,

Vim.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Uniforme de Siri

a (11) - Não me diga que sujei a roupa de domingo e não posso aparecer em público desse jeito. O pelotão dos amarrotados já dobrou a esquina e eu ainda aqui, olhando pra sua cara de taramela rachada. Pois fique você sabendo que eu rejeito todo o seu humor de serpente e nem tente me fazer ficar, pois de agora em diante não sou mais gente. Sou capitão, tenente ou indigente metido a besta no meu uniforme novo de Siri.

- Te discunjuro, peste! Quem nasceu pra Xangó  jamais será Robalo! -Pragueja a nega véia.

Volta e meia, seu Nazinho cuspia na raiz do pé de pau e entornava a branquinha sem fazer careta. Olhava em volta para se certificar de que estava ali mesmo, na sombra rala da algaroba cabocla.

Prejuízo, o vira-lata sarnento, observa tudo com seu olhar de peixe morto e o sol trombica na maré alta pra sumir devagarinho, incendiando os morros do Bom Jesus.

 

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O escritório do senhor Olusco

Snapshot - 32 O casarão ergue-se à margem da rua como uma muralha  que ao longo dos seus mais de duzentos anos sustentou olhares soberanos sobre a cidade, desde suas janelas escavadas no frontispício decorado com anjos e demônios.
-  Eu quero dois sacos plásticos para colocar relíquias que enviarei a parentes distantes – disse suplicante enquanto varria o ambiente com os olhos semicerrados. Olhos de quem é míope, sabe como.
- Vamos entrar, está procurando o escritório do senhor Olusco? Sussurrou o zelador, enquanto sumia na esquina escurecida pela sujeira de mãos antigas e muitas outras imundícies que os dias acumulam nas paredes.
A escadaria parecia infinita em sua solidão e umidade. Portas entreabertas vomitavam restos de interrogatórios, gritos e culpas aparentes.
Em flashes, como nos sonhos lembrados com dificuldade ao acordar, enquanto esticava-me escada acima, sentia a estranheza das coisas, o delírio das emoções arrastadas ao limite de humanidade daquela gente.
Não sei o que faço aqui! É certo que outras lembranças me ocorrem no crepúsculo que, lá fora, pinta as paredes e sombreia os buracos do jogo de gude escavados na terra, como as sombras nas crateras da lua.
Lembro dos barcos submarinos que passavam velozes sob a caravela frágil que, talvez, não alcançasse o seu destino no azul profundo adiante.
Agora desço no caracol cinza por entre múltiplos ambientes, cores, gentes, sinas, pragas e presentes sem passado. Não sem passado quantitativo, mas sem histórias acumuladas como bagagem para o futuro, para as incertezas e circunstâncias da viagem.
De novo  a escuridão molhada que acomoda.
- Êi, eu te conheço. Não és o palhaço que comia fogo no circo de lona verde, engraxada e remendada? Como está a rumbeira? Diz aí!
O palhaço parecia não ouvir, apesar da pouca distância e ainda me lembro das partituras para clarineta jogadas sobre a mesa da sala, da lona verde e da dançarina. Linda era o seu nome. Linda morena.
Não sei mais se subo ou desço. Só a vertigem que me ilude e me leva de volta para o início ou o fim. Não sei distinguir, apenas supor que vejo o que não veria se meu ouvido interno se comunicasse direito com o cérebro.
O cérebro da moça da loja. Pelo menos a sua cabeça parecia tão pequena, que diria quase impossível comportar um cérebro humano. Mas ela me olhou de forma tão inteligente, que me apaixonei pelos poemas que, com certeza, guarda na gaveta do seu armário, em velhos cadernos escolares.
A porta. Agora a vejo. A saída desse manicômio ou condomínio. Dá no mesmo. Não é a insanidade que perturba, mas a excessiva certeza quando tudo é mistério e que se revela às migalhas, como seguir o pão de João e Maria.
Abro para o vazio das ruas com suas gentes toscas e vou.

por Sérgio Araújo