domingo, 26 de dezembro de 2010

Não é nenhuma luz do sol

não é nenhuma luz do solAgora olhava a vastidão da caatinga e seus galhos, como braços retorcidos, sapecados, arranhando a paisagem.

O circulo se fechou unindo à ponta do Saara. E toda a tempestade é um canto varrendo as nuvens supostamente postas no céu de gifs replicantes.

As marcas da praça ampla a me olhar, sozinho, posto no vão aonde sopram os violinos cavando valas na superfície do vento.

Não é nenhuma luz do sol aquele reflexo que te dei numa tarde, cansado de ver os barcos quando estava no cais das caravanas.

Aquele som antigo,

Mãe Terra,

Aquarela.

Blue de cítara,

Atabaque

Baque, bac, back, baq.

E não há outro mundo para me espelhar. Apenas o mar, camaleão engalanado para a eternidade.

 

por Sérgio Araújo

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Na plenitude do dia

Fábrica dos Espelhos (Factory of Mirrors) by Artur Manuel Rodrigues Cruzeiro-Seixas.Como posso na plenitude do dia

Catar versos tão maduros?

Alguns agarraram-se a mim

Como a um pai zeloso.

Outros, colhi como frutas maduras.

Há os que correm, aflitos, olhando a retaguarda.

Os que parecem ter sempre estado aqui ao meu alcance.

Uns simplesmente explodem sobro os outros

Espalhando suas partes,

Imagens que se agregam com facilidade

Na extensão dos signos

Já plenos de si.

 

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O céu sobre o campo

4033270031_8dc11f86e4O campo coberto de céu nunca morre

Se a grama seca

A raiz toca as nuvens no seu anverso.

O céu espelha a grama sobre o campo

E molha o solo do universo.

E eu quero conversar

Olhando nos meus olhos

Que refletem as nuvens sobre o campo.

Já não posso chorar

Para não molhar o campo sob o céu.

Basta que eu seja um homem

E possa olhar o campo e o céu

No limite do horizonte

Tênue, traço constante.

 

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Soprando versos no meu ouvido

tumblr_lbbn4rIg5K1qeubbbo1_500Quero falar sobre aquela emoção antiga

Perdida na floresta dos sentidos.

Vez em quando,

Quando levemente entristeço,

A vejo surgir assim tão magra e leve

Que parece definhar longe da minha atenção.

Mas ela está sempre lá,

Entre sombras finas, chuvas e silêncios.

Vez em quando,

Quando levemente entristeço,

Sinto-a perto de mim,

Soprando versos no meu ouvido.

 

por Sérgio Araújo

sábado, 13 de novembro de 2010

Café Aragipe

rua sta rosa

Para Aglacy Mary

Também apago sombras!

Sinto-as…

Sombras são quase coisas,

Outras coisas.

Talvez as próprias coisas!

Quem sabe atalaias

Ao sol ardente

De uma tarde de verão.

Sombras no oceano,

No mesmo plano da avenida.

Rua da frente!

E não me  esqueço da Santa Rosa.

Café Aragipe,

Cheiro de manhã

Impregnado de humanidade.

 

por Sérgio Araújo

domingo, 7 de novembro de 2010

Céu de bem cedo

2006786941_a43bc9de87_mMeus pensamentos sonoros como versos matutinos

Rasgam o papel com letras agudas

Semeando palavras na branquidão.

Rimas voláteis como sax on song

Findam completas feito chuva na tarde.

Com um sorriso discreto,

Te vejo na gota de tinta,

No fim da linha em espiral

Que traço com meu bico de pena.

Serena,

Passas bebendo nuvens alvinhas

Num céu de bem cedo.

Daqui, do lado da sombra,

Corro os dedos distraído

E risco o teu nome em silêncio

No vapor fugaz da vidraça.

 

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Conta aberta

BlancoyNegro.25Qual a solução?

Se no vão do meu olhar incerto,

Da minha conta aberta na atmosfera

Sou um pássaro na chuva

Nesta praça insana.

Um ponto

Num canto do mundo.

 

por Sérgio Araújo

domingo, 24 de outubro de 2010

Solilóquio solúvel

1224703122vvJT8sR Tarde infinita

Besouros circulam sobre a cabeceira da cama

Indiferentes

Como se andassem sobre as notas desta música fria

Solidão de tarde de domingo

Incertezas

E minha voz

Fria

Vazia

Solo de saxofone

No silêncio solúvel

Na palidez do azul entre os galhos.

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Requerente

palavrasSentado num sofá improvisado com um banco de kombi, observa atento o fluxo intenso dos requerentes.
À sua direita, numa saleta abafada e barulhenta, um velho balcão de madeira derrotado pelos cupins e pelos muitos anos de serviço público servia de apoio para os que não conseguiram assento para a longa espera.
O piso lixado pelos pés de muitas ruas, pobres pés doídos e cansados, apertados desde o alvorecer, corridos nos trilhos do subúrbio, molhados na subida do barco, pisados no ônibus e, quase sempre, machucados nas irregularidades dos calçamentos.
Os requerentes são seres angustiados. Trazem em suas mãos suadas, velhos papéis, retratos de meia dúzia, envelopes pardos, filhos menores, bebês e gordura de pastel.
Calados, tímidos, barulhentos, sedentos e suados seguem embrulhados em suas roupas de requerentes compradas no fim do ano passado, e inauguradas num acontecimento que terminou com bolo de chocolate para curar a ressaca.
Do seu banco, ele observava. Não ousava sair e perder o posto conquistado por hora de chegada, por antiguidade. Como requerente experiente jazia incólume na sua longa espera.
Ele sabia como o sistema funcionava: tinha que se diferenciar dos demais requerentes. Não bastava, é claro, ficar quieto, imóvel. Era preciso conquistar o olhar do servidor. E isso não era uma tarefa fácil.
Era como uma disputa de gato e rato: Requerente e servidor. Alternando a ação ofensiva, travavam um duelo silencioso disputando o poder de ser quem é na multidão de anônimos do dia-a-dia.
Porém, naquele dia, ele perdeu. Sentindo-se aviltado pela astúcia do requerente, Almerindo Fiapos, o Notário do turno, encerrou o expediente dobrando com desprezo a plaqueta sobre o balcão de atendimento.
ENCERRADO!

por Sérgio Araújo

domingo, 10 de outubro de 2010

O espírito do tempo

1240122927uqpDxcyO espírito do tempo não é um fantasma, uma assombração.

Não senhor!

Ele é um vazio cheio de recordações.

Ele impregna essas paredes com suas marcas,

Arrasta suas correntes de datas,

Farfalha nas janelas os seus galhos de folhas secas.

Sussurrando como o vento,

Ele aperta o nosso peito nos tirando o ar.

Nos diz dos feitos e desfeitos,

Do paradoxo de ser o que não se é

Não sendo o que se foi, sempre.

Ele charla, nos convida a dançar

E como um louco,

Perdido em sua própria dança

Outra vez nos faz criança.

 

por Sérgio Araújo

Foto: By Raaden

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Palavras e coisas

800px-Dead_Vlei_5 Não há emoção apenas naquilo que dizem conter emoção.

Naquilo que dizem traduzir as muitas razões dos séculos,

Nas doses de gosto conhecido,

No que já vem sorvido.

Me emocionam as palavras que não contêm emoção pela

significação,

As palavras brutas,

Insólitas.

Porque antes de serem palavras

Foram sentimento.

Mesmo a mais grotesca e áspera,

Foi um dia emoção

Até que, criando novas flexões  e novos sons,

Irrompesse intrépida pela boca aliviada.

 

por Sérgio Araújo

sábado, 25 de setembro de 2010

Ponta das Margaridas

1221103722q6NV8r1Levantou às 3, às 4 partiu na velha canoa costeando o lombo do leste, devagarinho, na flor da maré grande.
Olhando de esguelha pra não esbarrar em pesqueiro coberto, Biô cantarolava baixinho e remava crispando a água nos dois lados pra fazer rumo certeiro no cardume de tainha.
Rede pronta na proa, branquinha na garrafa, já distinguia o vulto cabeludo da Ilha do Medo quando o primeiro pingo bateu como um cascudo na aba do boné.
Olhou pra cima, pro breu do céu e recebeu outro pingo. Dessa vez acertou-lhe o olho direito lavando as remelas e clareando a visão pra aurora que avermelhava acima da proa.
Biô, tirando força dos braços magros e ressequidos de muitos verões, fez a “Margarida” deslizar veloz contornado o lombo e ganhando mar aberto.
De repente, o que era claro ficou escuro, o céu enturvou e o vento soprou água do mar nas narinas de Biô. Margarida rodopiava num samba de roda encachaçado quando um peixe voador raspou-lhe a orelha e um fio de sangue correu, cor de rosa, sobre a camisa encharcada.
Lá se foi o remo, a branquinha vazou, a rede escorregando pela beirada, parecia fazer seu trabalho de todos os dias, espalhando-se sobre a água com suas bóias coloridas.
Margarida bebeu água, Biô também. O vento gelado chicoteava seu corpo, a canoa empinava e mergulhava na vaga: foi uma, veio a segunda, na terceira vez cuspiu Biô, mergulhou e não mais voltou, partida ao meio por um raio certeiro.
às 12, na praia deserta: restos de rede, tralhas de pesca, pedaços de pau, uma flor, um vidro de perfume e um rastro de peixe grande que se estendia da beira da água até o corpo de Biô.
Quem viu, contou do sorriso nos lábios do pescador e do cheiro forte de alfazema que se espalhou pela praia com a brisa leve da Bonança.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Scriptorium

scripAlém das escadas, soluções inimagináveis para todos os mistérios sob o teto de carvão. Abóbada longínqua desde o piso ordinário, ensebado; caprichosamente sujo.

A porta de saída, na verdade, fora a próxima cena; conta da Japamala retornada na infinitude da forma.

Não é o vazio das ruas, nem suas gentes toscas que agora vejo. De perto, grotescos sulcos impregnam a superfície da tela e nela está marcada a entrada do scriptorium.

Olusco não é o nome, mas ocluso. Este é o termo que em magenta se insinua no traçado pueril das letras pintadas na tábula  inclinada pelo peso do pincel.

Agora entendo a sinuosidade das escadas, a incerteza dos sentidos na experimentação do tato, a fuga para além das portas, o reconhecimento dos rostos em cubos.

Ocluso! – Sussurrou novamente o zelador já no vazio distante – enquanto repito incessantemente, como um recado que devo transmitir e não posso esquecer: scriptorium ocluso!

Caminho não sei se para dentro ou para fora, não vejo portas. Agora é o vazio e o frio das paredes que roçam meu corpo, regelando os ossos.

Corro como um alucinado e no desvario tudo se mistura: o mosaico do piso, as portas abertas, as vozes misturadas ao assobio do vento, a cabeça da moça da loja e seu cérebro minúsculo, a muralha, o tempo.

Com um rangido, uma porta abre-se diante de mim. Sob uma viga sustentada por duas colunas romanas: a porta do scriptorium.

 

por Sérgio Araújo

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Abrigo

≈_Half_MoonMergulhou na escuridão como quem adentra um abrigo na tempestade.

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Silêncios de entreletras

tumblr_l6zuyuu9jQ1qziwcjo1_500 - Está tudo bem com você?

- Como vai passando os seus dias?

Sabe, eu caminho nas ruas e olho para trás, de vez em quando, só para me certificar de que não deixei rastros.

Não, não me leve a mal. Não procuro me esconder nas multidões. Só não consigo deixar de ser coletivo.

Sabe, eu sou muitos e esta multidão, de certa forma, me protege.

Ontem, um sujeito me achou. Ele me viu quando eu cruzava a calçada e um raio de luz bem fino iluminou o botão da minha camisa.

Ele limpou os olhos, franziu as sobrancelhas e encarou o vazio que deixei no espaço da rua.

Às vezes ecoo como asa de libélula e o som se propaga como se fosse numa ruina grega.

Não importa. Vou meter meus poemas nos bolsos e fazê-los cair um a um; palavra por palavra; todos os silêncios de entreletras que deslizarão sobre as pedras para murcharem na areia fina.

Será minha pista. Minhas pegadas para serem seguidas.

De qualquer forma, está tudo bem.

por Sérgio Araújo

domingo, 29 de agosto de 2010

Roteiro


Um roteiro dentro das palavras.
Sempre tenho dessas coisas de dizer assim:
Como se já soubessem,
Como se a conversa tivesse iniciado antes
E já estivessem a par do assunto.
Eu corro com as palavras
Num roteiro implícito.
Deixo que as cenas se percam
Na integridade do termo
E termino, interino, transliterado.
As palavras, coisas que são,
Estapeiam os atônitos interlocutores.
E eu vou recriando o meu roteiro
Com palavras destoantes.
Não preciso seguir a turba,
Preciso de uma tuba, uma tralha qualquer,
Uma metrapalavradora cuspindo letras
No seu coração banal.

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Eu vim te ver

3177959130_26972c074d_mEu vim te ver.

Ver as cores que te dei naquele dia ensolarado,

Os cantos dos olhos quando você sorri.

Vim sincronizar sua voz com os ecos na memória,

Repetir a nossa história.

Vim andando na trilha que deixei,

Relendo os versos ao acaso.

Vim sem tempo pra ficar,

Sem hora pra sair.

Vim assim:

No pretérito perfeito,

Desse jeito,

Vim.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Uniforme de Siri

a (11) - Não me diga que sujei a roupa de domingo e não posso aparecer em público desse jeito. O pelotão dos amarrotados já dobrou a esquina e eu ainda aqui, olhando pra sua cara de taramela rachada. Pois fique você sabendo que eu rejeito todo o seu humor de serpente e nem tente me fazer ficar, pois de agora em diante não sou mais gente. Sou capitão, tenente ou indigente metido a besta no meu uniforme novo de Siri.

- Te discunjuro, peste! Quem nasceu pra Xangó  jamais será Robalo! -Pragueja a nega véia.

Volta e meia, seu Nazinho cuspia na raiz do pé de pau e entornava a branquinha sem fazer careta. Olhava em volta para se certificar de que estava ali mesmo, na sombra rala da algaroba cabocla.

Prejuízo, o vira-lata sarnento, observa tudo com seu olhar de peixe morto e o sol trombica na maré alta pra sumir devagarinho, incendiando os morros do Bom Jesus.

 

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O escritório do senhor Olusco

Snapshot - 32 O casarão ergue-se à margem da rua como uma muralha  que ao longo dos seus mais de duzentos anos sustentou olhares soberanos sobre a cidade, desde suas janelas escavadas no frontispício decorado com anjos e demônios.
-  Eu quero dois sacos plásticos para colocar relíquias que enviarei a parentes distantes – disse suplicante enquanto varria o ambiente com os olhos semicerrados. Olhos de quem é míope, sabe como.
- Vamos entrar, está procurando o escritório do senhor Olusco? Sussurrou o zelador, enquanto sumia na esquina escurecida pela sujeira de mãos antigas e muitas outras imundícies que os dias acumulam nas paredes.
A escadaria parecia infinita em sua solidão e umidade. Portas entreabertas vomitavam restos de interrogatórios, gritos e culpas aparentes.
Em flashes, como nos sonhos lembrados com dificuldade ao acordar, enquanto esticava-me escada acima, sentia a estranheza das coisas, o delírio das emoções arrastadas ao limite de humanidade daquela gente.
Não sei o que faço aqui! É certo que outras lembranças me ocorrem no crepúsculo que, lá fora, pinta as paredes e sombreia os buracos do jogo de gude escavados na terra, como as sombras nas crateras da lua.
Lembro dos barcos submarinos que passavam velozes sob a caravela frágil que, talvez, não alcançasse o seu destino no azul profundo adiante.
Agora desço no caracol cinza por entre múltiplos ambientes, cores, gentes, sinas, pragas e presentes sem passado. Não sem passado quantitativo, mas sem histórias acumuladas como bagagem para o futuro, para as incertezas e circunstâncias da viagem.
De novo  a escuridão molhada que acomoda.
- Êi, eu te conheço. Não és o palhaço que comia fogo no circo de lona verde, engraxada e remendada? Como está a rumbeira? Diz aí!
O palhaço parecia não ouvir, apesar da pouca distância e ainda me lembro das partituras para clarineta jogadas sobre a mesa da sala, da lona verde e da dançarina. Linda era o seu nome. Linda morena.
Não sei mais se subo ou desço. Só a vertigem que me ilude e me leva de volta para o início ou o fim. Não sei distinguir, apenas supor que vejo o que não veria se meu ouvido interno se comunicasse direito com o cérebro.
O cérebro da moça da loja. Pelo menos a sua cabeça parecia tão pequena, que diria quase impossível comportar um cérebro humano. Mas ela me olhou de forma tão inteligente, que me apaixonei pelos poemas que, com certeza, guarda na gaveta do seu armário, em velhos cadernos escolares.
A porta. Agora a vejo. A saída desse manicômio ou condomínio. Dá no mesmo. Não é a insanidade que perturba, mas a excessiva certeza quando tudo é mistério e que se revela às migalhas, como seguir o pão de João e Maria.
Abro para o vazio das ruas com suas gentes toscas e vou.

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Vida em um dia

Snapshot - 16 Caminho sobre a areia

Com os olhos nas nuvens.

As mãos vagueiam na atmosfera úmida.

Sinto

E vejo as estrelas mortas na praia.

Tudo é amplidão

E espuma

Que o vento desintegra.

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Retratos

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Há menos mistérios nas cores do dia.

Vejo agora o que antes perdia-se no afã dos sorrisos fartos,

Os detalhes se insinuam

Como estrelas no amanhecer

E eu os apanho com destreza.

Não vejo nisso uma façanha,

O que me importa

São as histórias inacabadas que completarei

Os assuntos sem memória que se pronunciam ao léu,

Os retratos sem faces no mosaico das ruas…

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Noite

daily_picdump_454_640_27Como crateras escavadas na noite densa para abrigar os restos de sua alma vazia; assim eram os olhos de Zulmira. Não via nos becos sórdidos a decadência das gentes, mas uma potencialidade para o inesperado e o fatídico.

Ela zombava do tempo e do ser. Nas tempestades da carne e no redemoinho da embriaguez delirante encapsulava antídotos e panaceias para os breves dias de amarga lucidez.

Em outros palcos, novos atores, velhos canastrões, máscaras partidas no relance dos braços e abraços enclausurados na inconsistência da troca. Nada de afetos afoitos ou sinceras desculpas.

Gente se parte ao meio – dizia - como quem rasga uma antiga fotografia para segregar memórias. Zulmira, a dama da noite, rompia a escuridão tateando na atmosfera onírica do seu próprio destino encrostado nas pedras das ruas.

Zulmira, por trás da fumaça, imprimia no ar um sorriso ácido como o blues que brilhava na superfície negra do vinil.

 

por Sérgio Araújo

sábado, 10 de julho de 2010

Metonímia

giacomo_balla-vencejos O vagão arrasta seus aros de aço

Os olhos esbugalhados simultaneamente fragmentados

no vapor fugaz

Um traço

Rangem esferas de rostos

Não há palavras

Apenas espelhos em cacos

Cada uma ponta

Afia uma outra imagem

E aponta

Em diferentes pontos

Os fragmentos do todo

E o desdobro

Do olho panorâmico de Bentham

Estacionário e sinérgico

Como num quadro futurista

Ou num filme de Eisenstein.

 

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O mar avança

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O mar avança sobre os pés de Hermes, enquanto uns peixinhos nadam apressados nas poças rasas e transparentes junto às pedras da praia.

O silêncio proporcionava uma sensação de comunhão com o universo. Só, Hermes sonhava olhando o horizonte alaranjado como numa ilustração de livro infantil

Nada mais poderia ser tão importante a ponto de quebrar a sintonia  daquele instante quase mágico, tão simples e tão complexo como o sentido de tudo.

Estava tudo ali e, ao mesmo tempo, nada parecia explicar-se por si só. O caso é que Hermes sabia não ser. Talvez nem soubesse. Na dúvida, ele varou o espaço com lascas de vidro do seu olhar turvo e inquiridor.

Adiante, o sussurro do vento o nada.

 

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A sós com as palavras

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Estamos todos sós

Nos arranha-céus,

No beco imundo,

Nos jardins…

Eu estou só

E quanto mais fundo vou,

Mais alto estou.

A distância não separa,

Mas preenche o campo de visão

Como se observa uma maquete:

A forma reduzida,

A realidade apreciável do todo.

Há sempre que nomear

O que se vê daqui.

Nada é o mesmo

E mesmo que seja será sempre  inominável,

Porque palavras,

Não as tenho para tal fim.

Me perco e me acho nos signos

E embora clara a visão,

É minha a construção do objeto que se mostra.

Dou forma e retenho a imagem,

O que sobra não é minha obra,

Mas aparas ressequidas

Que nada contam sobre a figura esculpida.

 

por Sérgio Araújo

domingo, 13 de junho de 2010

Zulmira perdida na noite fria

4408818849_e13689411b Então, ela via aquelas pessoas passando e repetindo gestos conhecidos, aquelas situações que há muito observava e que as devolvia, quase sempre, envoltas em metáforas para purificar a praça.

Uma espécie de dèjá vu em espiral. Agora ela compreendia que o retorno é eterno. As unidades vão e vêm para ocupar os papéis definidos: um arlequim, uma colombina, um palhaço de esquina, um líder, um zé ninguém…

Zulmira, a dama dos ratos, podia mudar seu destino e romper com o script original mas estaria apenas assumindo outro papel no teatro ao lado; na peça alheia que maternalmente lhe acolheria.

Ela se aquece agora na fogueira enquanto os mascarados avançam com suas tralhas e pretextos. O próximo ato flutua sobre as cortinas como uma nuvem,  psicodélica nuvem de velhas tempestades.

Um encontro consigo na confusão da rua. Entre cacos e restos de tudo: um olhar que não vê, uma lembrança descabida e Zulmira perdida na noite fria.

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Interregno

748px-WLANL_-_jankie_-_De_zaaier,_Vincent_van_Gogh_(1888)_(1) Olha sobre aquela rama.

O sol derrama suas finas teias de luz.

Uma canção…

E o dia perpetua a sua trama.

Agora é um violino,

Ou será um um fiapo de nuvem..

E esse brilho

Que envolve a correnteza rio abaixo?

Folha,

Limite de toda a seiva.

Olha a sombra

Envolvendo a terra como uma quimera.

Encolhe a folha

E rosna  contrabaixo.

Interregno,

Claro e escuro

Reinado da incerteza

Repousa a natureza ensimesmada.

 

por Sérgio Araújo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A música dos planetas

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Aqui estou, fruto da minha própria ilusão. Debalde escorrego como uma barata sobre uma ponte que constrói-se e dissipa-se conforme a sombra esguia do meu corpo avança.

Trago em minhas malas, restos de planos em papel embrulho, perguntas sem respostas, pingos de chuva que não secaram com todos os verões e ainda refletem, estranhamente, a luz da manhã brumosa que os produziu.

Sou um estranho corpo alojado em minhas vivências, como alfinetes espetados em antigos mapas. Minhas trilhas, costuradas que foram no couro áspero dos dias, marcam, cerzidas umas, calcificadas outras tantas e poucas abertas ainda sangrando à mercê dos novos sonhos.

Que importa ter ouvido a música dos planetas! No baile, embriaguei-me e como artista transformei a festa numa arena de máscaras tão efêmeras como as cores que sobram do bater de asas de um beija-flor.

Daqui, da minha gaiola, veja a imensidão do espaço e a perdição do tempo. Meu braço curto não toca o que almejo. Mas, supondo que abram-se as portas e escancarem todas as janelas, eu escaparei pela fresta que abri nas longas vigílias e no trabalho árduo principiado há muito.

Eu te digo, meu camarada: trago nos olhos a imagem das ondas que se quebram sobre as pedras na praia borrifando suas alvuras e cantarolando trovões.

 

por Sérgio Araújo

sábado, 29 de maio de 2010

A Notícia

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Quem olhasse para o estrangeiro naquele momento, veria seu corpo iluminado como se um raio de luz incidisse sobre a superfície plana de um espelho, projetando-se sobre sua figura nebulosa que desaparecia enquanto a luz se intensificava e se expandia ferindo o espaço que o separava do caçador.

Em sua curta duração, o raio de luz marcou a trajetória sobre o topo do minarete cortando-o como se fosse uma espada lançada da região oculta dos cúmulos que pairavam sobre a cidadela distante.

Na sala de controle, o alarme sonoro indicava situação de perigo. Há poucos metros Dalí, um Volvo XC60 corta a gelada Route de Meyrin .

O Caçador, atônito, aguarda novas instruções. Mechthild manobra o carro para abastecer na Garage Meyrin-Douane enquanto o celular toca.

- Venha imediatamente!

- Estou chegando – disse pensativa.

Avançou deixando uma nuvem de vapor sobre a via molhada. Na sala de controle, Jacques lhe espera com uma expressão de espanto.

- O que houve Jacques?

- Um incidente, uma situação desconhecida, algo saiu errado e cancelou o sinal do estrangeiro justo no momento do encontro com o caçador.

- Como assim? – perguntou Mechthild surpresa com a notícia inusitada.

- Veja você mesma, - Jacques aponta para a tela que ainda mostrava o caçador parado sobre a areia quente vasculhando a paisagem com os olhos.

- Reúna a equipe e avise à sala 404. Temos um problema!

O Professor Cox entrou na sala, apreensivo. Mechthild caminhou em sua direção e entraram na pequena sala de controle da segurança.

- Tenho más notícias. – Murmurou o professor Cox enquanto fechava a porta de vidro e apertava o botão para trancá-la. 

- Estamos lidando com esta situação há várias horas e agora aparece isso...

Com alguns toques, fez surgir na tela do notebook sobre a mesa um título encimando uma foto do LHC: Man arrested at Large Hadron Collider claims he's from the future.

Leia também e nesta ordem os capítulos: Düsseldorf-Deutschland, O Estrangeiro, O olho de Hórus, Simulacro, Atalaia, A Notícia.

 

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Reversos

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Não penso em poesia

Como versos.

Antes, reversos.

Transcrevo os meus próprios textos

Que transgrido na tez insípida do papel.

O que me importa

É o código aberto, o incerto;

O que muda ao gosto do cliente

Que trai o dito e, no desdito,

Reescreve incógnito

Os seus próprios versos.

 

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Minimamente

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Eu queria ouvir palavras que me dissessem do início,
Que me apontassem os fins,
Que sorrissem pra mim,
Assim, minimamente…
Queria palavras teclas,
Translúcidas;
Palavras páginas, envelhecidas pelo tato,
Que expressassem o que sinto agora:
Uma música de gentes e coisas
Com letras em vez de notas,
Inverossímil!
Fictícia na película marcada pelo tipo virtual,
Transliteração do caos criador
Em palavrasminhas,
Palavrasua,
Palavraseu,
Palavraeu,
Palavra.

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Como gravuras antigas

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Amarelo o sol

E eu caminhei pela areia.

Ontem à tarde

O mar se fez estrada iluminada

Como nas gravuras guardadas em gavetas.

Entes que eu esqueça

Havia tantos azuis, outros tons

E cores mais que não sei de cor.

Sei que passavas às vezes

Com um ar de seda,

Cedinho,

Com o corpo leve em minhas mãos.

Meu relógio de pulso,

Meu mergulho no tempo…

Todas aquelas coisas sob o sol

Eu vejo de novo

E, como se abrisse uma janela,

Digo: Olá!

Minhas mãos ainda estão aqui,

Eu ainda sou eu

Caminhando sob o sol amarelo.

 

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Através das coisas

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Não sabendo mais o que pensar, acomodou-se com gestos lentos ao assento. As luzes riscavam em cores quentes a janela cortada ao meio pela cortina de tecido vermelho. Retalhos de noite.

Escapam-lhe os sonhos efêmeros que escorregam como lágrimas. Através dessas coisas, a moça do lado está mais próxima. Não vê, sente! Ele cavalga agora numa planície orvalhada.

Está coberto de sentimentos e não sabe o que fazer com os potes de palavras que trás consigo. Atira umas poucas ao chão, outras são substâncias, algumas magnéticas. Retalhos de emoção.

Destinos opostos, mesma rota. Ela está no lado da lua. Ele cata na brancura das folhas como parte da mesma visão. Gestos, rostos, uma pálida sombra e uma melodia que levita como névoa na estrada deserta.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Nave de plasma

563291049_2c8c4b6fe1José estava ficando velho. Apesar da contagem do tempo, não era a cronologia que marcava como tatuagem de dragão, a alma inquieta do nosso amigo. O que ele não tolerava  e lhe tragava a insignificante existência era um querer quase insano.

Ele esperava por não saber procurar. E, nessa espera, desaguava sua incompleta aventura em prosa e versos que, com o tempo, tornou-se um enfado. Já não supria mais a necessidade de transcender os vazios dos dias, a conta não batia e as despesas eram maiores que a receita.

Queria. Não sabia mesmo o quê. Queria talvez o dia com céu azul e alguns cirrus bem branquinhos. Quem sabe navegar no Jet Stream pilotando uma nave de plasma.

José queria, mas não sabia. Certa vez pensou que podia ser marinheiro no barco de Jack London. José era mesmo assim: impressionava-lhe o modo de vida aventureiro e romântico como nos velhos contos que ainda empoeiravam em sua estante.

José estava ficando velho. Apesar da contagem do tempo, não era a cronologia que marcava, como tatuagem de dragão, a alma inquieta do nosso amigo. O que ele não tolerava  e lhe tragava a insignificante existência era um querer quase insano.

Ele procurava por não saber esperar. E, nessa procura, completava a sua aguada estrutura rascunhando o tempo no tédio das horas.

José sabia, mas não queria  viver a insalubridade das idéias comuns.  Nada era tão belo como olhar o mundo com óculos novos, ler “Noites Brancas” de uma tacada só ou ouvir os passarinhos naquela manhã com céu azul e cirrus brancos.

Pensava em ser marinheiro, aventureiro, romântico. José queria acordar de férias para escrever um livro. Queria viajar para a  Rússia, Alemanha e Xique-Xique.

José estava ficando velho e nessa espera desaguava ou, quem sabe, navegava na brancura dos livros tatuando dragões na memória, nas noites empoeiradas da sua existência.

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O tempo não passa como se pensa

time
O tempo não passa como se pensa.
Ele para nas tardes cinzentas
Quando, olhando o horizonte,
Ouvimos os sussurros da brisa ligeira.
Sentimos o tempo que diz:
Ei, espera que vou te mostrar:
Olha pra mim!
Podes ver-me na réstia de sol
Sobre o muro?
No pássaro que canta acolá?
No inseto traquinando amiúde?
No som de um alaúde?
Olha pra mim
E murmura aquela cantiga
Aquela, da moça do conto de Maupassant.
Repara!
Escuta, olha, sente.
É como extrair som das teias,
Soa sublime e quente como um colo.
Olha pra mim
E me diz de si
Que eu sou todo ouvidos.
Intenta tocar-me
Nesse jogo de pega-pega.
Olha pra mim
Que te mostro coisas sem fim.
Coisas que brilham no jardim,
O violino da valsa,
A cigarra
E a traça perdida na parede branca.
Às vezes o tempo para
Na música que nos embala
E nos faz pensar
Que apenas blefa
Quando enruga a face lisa do artista.

por Sérgio Araújo

sábado, 24 de abril de 2010

Desfiladeiros

3168979147_9df2d9542a Com suas marcas casuais,

A parede da pedreira

Que não existe mais enquanto parede,

Outrora sentiu o vento acariciar [como aço]

Cortando a face da pedra.

Agora não é mais dura,

Não sombreia mais o pó das tardes

E eu não sinto medo da altura.

Não sonho com escaladas e desfiladeiros.

Não brinco mais

Quando a chuva vem em grossas tranças

Formando laguinhos de sujar pés.

O sol não aquece a parede de pedra

Até secar o galho preso na fenda

E eu não posso quebrar o galho

Entre os dedos,

Sentir o pó da madeira.

A parede da pedreira não é mais de pedra,

É de memória.

Seja lá de que matéria for,

Eu não brinco mais na sombra da pedreira.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Entre o ser e o nada

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Li o poeta que cantava a lua.

E como cantava.

Na margem do rio,

No horizonte,

Na fonte.

Queria também cantar a lua.

[La luna]

Sobre a espuma do mar,

Vertigem na escuridão.

Ciência e mistério

No espanto do primeiro homem.

Na beira do abismo,

Na noite fria,

Perguntas sem fim

Entre o ser e o nada.

 

por Sérgio Araújo

domingo, 18 de abril de 2010

O ilustre desconhecido

tumblr_kui3btl5g01qa7p6vo1_500 Observava tudo ao seu redor com a argúcia de quem investiga um crime ou um fenômeno obscuro. Naquela sala podia passear com os olhos pelas ações e reações dos presentes.

Não deixou de notar aquela pessoa que parecia estar pouco à vontade. O que lhe incomodava era um livro. Sim, um livro que, a julgar pelo modo como se comportava, parecia ser um ilustre desconhecido.

Não tinha aquela intimidade de leitor dedicado. Chacoalhava para lá e para cá como se fosse o livro, uma andorinha desvairada. Era um objeto incômodo. Parecia que o volume ardia em suas mãos diante da maneira como se livrava constantemente do objeto.

Levantou-se, em determinado momento, e o fechou de vez. Com um ar de repulsa empurrou o livro para longe e requebrou como se ouvisse um pagode, desses que fazem sucesso no carnaval da Bahia.

 

por Sérgio Araújo

sábado, 10 de abril de 2010

Panorama

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Perscrutando os silêncios da minha autonomia.

Meus olhos internos, panópticos,

Percorrem os cantos

Desta prisão panorâmica.

Minha liberdade é uma mentira

Exaurida nas páginas amareladas da história.

Minha vontade

É um jogo de dados.

 

Sérgio Araújo

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Lá fora

deviantart - photo by senicarAs nuvens pareciam pesadas demais para poder flutuar acima de todas as coisas. O chão sequer sustentava as carapaças ancestrais, ao léu, soterradas no Humo.

Como um retrofoguete, um foco de luz acelerou sobre sua cabeça e ele curvou-se feito artista ovacionado pela platéia da Avant-première. Lá fora não há proteção. O palco é vasto e profundo. Nem a trufa nem a fruta, o fel é o sabor.

Ofuscado pela luz intensa ele vagueia intruso na cegueira alheia e desinteressada. O palco gira e a dança dos rasos irrompe das cortinas rotas como um tropel sôfrego sobrepondo as máscaras a cada salto.

Agora ele é de foz em fora, soluto na imensidão unânime da sua espécie. Não há retorno, apenas o entorno; engenho lúdico que impele a súcia para o vazio.

Meditabundo, a um canto se acomoda. Seu pensamento recolhe as reticências da história e as compila na trama do córtex. Queria poder secretar os juízos e, como panacéia, pulverizar a multidão fazendo arco-íris numa manhã de primavera.

 

por Sérgio Araújo (foto: deviantart by senicar)

segunda-feira, 29 de março de 2010

Da natureza das coisas

Image by Jef Safi

Fazia-lhe referência, frequentemente, para confirmar um pensamento. “Força e Matéria”, de Ludwig Büchner. Era uma questão de gratidão  ao mestre e, ao mesmo tempo, lhe permitia um inebriante orgulho intelectual que procurava não disfarçar e deixava que o percebessem como um leve ar de superioridade.

Era absurda a incapacidade deles em compreender a verdadeira identidade das coisas. A Matéria é primordial. E, ao demonstrar isso, recorria a Demócrito, Heráclito e Epicuro com uma destreza admirável e numa oratória cheia de artimanhas dialéticas, verdadeiras armadilhas eruditas.

Até que ela apareceu em sua vida. Teóloga,  católica praticante, devota de Nossa senhora de Fátima e estudiosa das obras probatórias de Santo Tomás de Aquino.

Ela era doce. Cultura recheada por longas visitas aos santuários europeus, museus e relíquias do mundo antigo patrocinadas pela riqueza cacaueira da família. Fazia palestras em centros sociais e comunidades de base onde espalhava como confetes coloridos, o seu tomismo cheio de fé e revelação.

Nas noites de frio, após um longo beijo apaixonado, enroscavam os pés por baixo do cobertor e sonhavam. Ela via-se envolta por elétrons, prótons e neutros numa coreografia minimalista, a bailar no universo em expansão. Ele sonhava recitando de cor a Suma Teológica, embriagado, abraçado com Tomás de Aquino numa taberna medieval.

 

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 25 de março de 2010

Forma

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Gosto das formas.

A superfície exata,

O ângulo do retângulo.

A forma é mais que aparência,

É essência tátil

E retrátil.

O agudo, o rombudo, a bolha.

A forma é antecedente.

É o conteúdo insurgente.

[A pedra de marte

É a mesma no meu quintal.]

A forma não é forma, o seu modelo,

Morfeu adormecido.

A forma é o oposto do vago,

É rebento inconteste da materialidade.

A forma

Forma.

Sérgio Araújo

sábado, 20 de março de 2010

Mínimo

324212502_e9c5d52890 Tento te achar

Na ponta dos pés

Sobra as cabeças da multidão

Olhos, mãos,

Sonhos e desencontros

Repetições

Espelho

De repente, num lance

Relance

Você em minha frente

Tateando as teclas do piano

Mínimo

Mi.

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 18 de março de 2010

O homem velho

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Procurando “O direito ao ócio” de Paul Lafargue, ele tombou o livro que se escondia, estreito que era, entre o “Ócio” e o “Capital”. Era um volume de bolso editado nos anos quarenta, com tiragem limitada, impresso em papel Leorne e rubricado pelo editor.

Nada de excepcional, posto que sua estante abrigava obras adquiridas no velho “Sebo Brandão”. Todavia, aquele exemplar lhe chamou a atenção. Não se lembrava dele, com certeza não o tinha comprado e muito menos lido.

“Um homem velho”, de Frederico Guilherme Framet, tradução de Joaquim Pinto Costa. Editado em Lisboa, o livrinho tinha a arrogância das grandes obras. Mas quem seria esse tal de F.G. Zamet? E o seu personagem, o homem velho? Não parecia um tratado de psicologia nem tampouco de fisiologia. Tinha páginas a menos que a conta necessária para tal empreendimento.

Era um pequeno conto, com certeza! Estava disposto a se deixar levar pela narrativa, penetrar no universo misterioso de um autor sobre o qual nada conhecia.

Abriu o livro como se abre aqueles livrinhos de “pensamentos do dia” e leu a esmo: “não compreendo por que julgais ilegítimo o entusiasmo que não morreu com o tempo. O mundo está cheio de pessoas cuja casca áspera e rugosa denuncia  a passagem do tempo e que conserva o viço que impele o seu querer. A morte da semente é a vida do broto”.

Leu sem parar o velho e insignificante livrinho achado espremido entre gigantes.

 

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 12 de março de 2010

três por quatro

55434692_b406286e38Desceu do ônibus na pracinha do terminal. À sua frente, petrificada numa pequena colina, erguia-se impávida uma capela centenária. Escorregou no asfalto tingido pelo óleo dos velhos motores das Marinetes.

Era o primeiro dia de aula na capital. O olhar desconfiado de garoto do interior registrava tudo em lances tímidos e inquietos. O medo de chegar atrasado, de errar o caminho, de ser aceito. Enfim, o desconhecido tem cheiro de fumaça, café torrado e perfume de mulher.

A foto depois da aula,  a foto depois da aula… Ia repetindo enquanto caminhava orgulhoso por estar ali. Era uma nova vida afinal. E ali estava. Sozinho. Por sua própria conta e risco transitando entre desconhecidos, ambulantes, sorrisos alheios, garotas na fila e, provavelmente, os batedores de carteiras de quem tinha ouvido falar nas preleções da Tia Zulmira.

A foto na volta… A camisa branca com o escudo azul. Calça azul marinho, sapato preto. Tudo tem o seu sentido. O dele era o estudo. O conhecimento que lhe fora negado pela ignorância dos interlocutores adultos, o que não tinha nos livros lidos, o que nem os livros sagrados explicavam, doravante estariam provados e escritos com esferográfica no caderno de dez matérias.

Na entrada, o portão de ferro rangendo abria espaço para um pátio de pedras portuguesas bem diante do edifício neoclássico que se insinuava austero, como deveria ser a casa do conhecimento. A escola da capital.

Ninguém reparou na figura tímida que se encolheu numa cadeira de canto e ficou a saborear as novidades. Escolheu amigos, adivinhou os nomes de alguns, criou histórias que se passavam além daquele momento e se apaixonou pela menina de óculos e cabelos negros.

O som da sirene interrompeu a aula que invocava histórias antigas. Esperou pelo vazio da sala para admirar as pilastras magníficas, os móveis escuros, o chão de cerâmica com motivo antigo. Saiu lentamente e novamente a lembrança: a foto.

Do alto da ladeira avistou um lambe-lambe. Sentou-se num banquinho e reparou no balde para lavar as fotos, os rostos desconhecidos que estampavam as laterais da velha câmera. Será que ele seria mais uma daquelas fotografias? Não importava. Era fácil ser anônimo naquela cidade.

Atenção! Pronto. Seis faces idênticas em três por quatro para provar que ele estava ali. Não era aquele que há pouco brincava de cowboy com os amigos e distribuía tiros de espoleta imitando a rudeza dos vaqueiros do Faroeste. Era agora compenetrado. Um objetivo novo que começava a ser conquistado ali, naquela hora e naquele lugar.

Um leve sorriso era visível na foto que se queria séria. Guardou a meia dúzia acomodada num canto quadrado de envelope de carta. Enfiou as mãos nos bolsos e penetrou na massa colorida que atravessava a rua na faixa de pedestres.

 

por Sérgio Araújo

 

domingo, 7 de março de 2010

Cosmonauta

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A xícara de café refletia na superfície escura e brumosa da bebida, a luz difusa da manhã. Os braços apoiados sobre  mesa contrastava com a alvura impressionante da toalha.

Não havia coisa que pudesse ser descrita para além desta cena. Um estranho e imenso vazio. Era como uma tela negra em cujo centro projetava-se aquela composição bizarra e constrangedora.

Da mesa podia-se ver apenas a metade ocupada, a outra metade parecia ter sido apagada como se apaga um desenho qualquer usando uma borracha escolar.

Era um desenho infantil, porém caprichoso e revelador de um talento inato e ainda um pouco imaturo. Parecia feito a lápis numa técnica em que  a representação principal vasa, na própria brancura do papel, em contraste com um fundo matizado. Aqui, um fundo escuro em grossas camadas de lápis de cera.

Se havia cor para lá do preto e branco eram as ranhuras que, amareladas, vestiam um corpo humano que se sobrepunha à mesa e que também fora apagado nas extremidades.

Insinuava-se um céu que não existia no desenho. Podia-se perfeitamente imaginar as estrelas brilhantes, restos de nebulosas, pequenos planetas distantes e alguns sóis com brilho intenso por trás dos panos enevoados das galáxias.

Num canto, dissimulado pela intrincada trama negra, um vulto prateado flutua como um cosmonauta à deriva no espaço infinito, rodopiando até sumir na margem próxima do papel.

 

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Atalaia

Anastasiya Markovich-Balls of World
Do alto do minarete, o muezim¹ observa atentamente aquele que lhe pareceu um almóada², marcando a areia fina do deserto com a barra do seu traje berbere.
Mechthild, absorta em sua tarefa de investigar a procedência da intromissão no processo de monitoramento das transferências, manipulava os controles como se fosse um autômato, sem a interferência nefasta da emoção.
- Averróis, mestre dos mestres. – sussurrou o caçador ao passar diante da Mesquita que se impunha solene na aridez da paisagem. O estrangeiro percebeu o movimento do estranho berbere e caminhou em sua direção como se percebesse a necessidade de fazê-lo. Não tinha conhecimento do encontro e, no entanto, sentia-se atraído pela figura vestida de negro que andava deslizando com as mãos ocultas nos muitos panos da sua roupa.
- Mas que diabo quer dizer isso? – indagou incrédulo o pobre Jacques.
Mechthild não respondeu, continuava a digitar sequências incontáveis num teclado numérico.
O muezim contava os metros que separavam o caçador do estrangeiro e testemunhava, sem saber, um encontro impossível para ele e seu universo real.
- Achei, achei... – disse Mechthild, aos gritos, assustando os presentes naquela sala.
- Quer ajuda? 
- Não é preciso Jacques, obrigada, já estou quase.... lá. E dizendo isso, lançou um olhar decisivo ao écrã suspenso à sua frente.
O caçador está diante do estrangeiro.

Este é um conto que está sendo publicado em capítulos. Portanto leia também e na ordem: Lapso, 404 Error, O caçador I, Simulacro.

por Sérgio Araújo

¹ encarregado de anunciar em voz alta, do alto dos minaretes, o momento das cinco preces diárias na Mesquita.
² Os almoádas surgiram em Marrocos no século XII, descontentes com o insucesso dos almorávidas em revigorar os estados muçulmanos na Península Ibérica, bem como em suster a reconquista cristã.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Código













O código
derrama suas tags
na fronte
do instante HTML.
Saliente,
decide sobre o umbigo
do conteúdo
no espaço limitado
do seu corpo que,
intransigente,
se revela opaco e solúvel
na edição intempestiva
da escrita automática.
Doravante,
arvora-se síntese
replicante
e paradoxal,
movendo-se
autóctone
na simplicidade aparente
das calvas páginas virtuais.






O código
derrama suas tags
na fronte
do instante HTML.
Saliente,
decide sobre o umbigo
do conteúdo
no espaço limitado
do seu corpo que,
intransigente,
se revela opaco e solúvel
na edição intempestiva
da escrita automática.
Doravante,
arvora-se síntese
replicante
e paradoxal,
movendo-se
autóctone
na simplicidade aparente
das calvas páginas virtuais.




quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Kino

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O mar. O olho ronda o fio das águas rasas e revela a âncora enfiada na areia. Conchas, bóias de salvamento flutuam, correntes avançam corroídas.
O sábio do futuro é a lança que repousa na laje à beira-mar. Ancorantes retomam antigos pensamentos que diziam:
Depois de muito relutar,
Ligeiro,
Quase que esperava pela sua ausência.
Ela estava
E o roteiro rabiscado em papel quadriculado
ficou sem sentido.
Assim como a metáfora solta ao acaso, as palavras são redondas como se viessem de lábios de cristal.
Correntes, contas e traços descalços como flores no caos. Tensão entre a tragédia e a farsa.
Ancorantes, saltimbancos profetas da ataraxia!
Façamos o jogo.

por Sérgio Araújo

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Haicai III

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Em meio aos versos rabiscados de hoje,

Sou criança perdida em terra estranha.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Haicai II



Na manhã, entre flores e árvores,
O teu sorriso
Explode em minha cara
Com gosto de laranja.




por Sérgio Araújo