sábado, 30 de maio de 2009

Janelas

797px-János_Tornyai_(1869-1936)_Window_of_the_Atelier(1934)
As janelas sempre me intrigaram. Há janelas para a escuridão, janelas para uma luz intensa, janelas que permitem vislumbrar recortes do ambiente, como num quebra-cabeças.
As janelas estreitas são como ranhuras na solidão do ambiente; as janelas longas não mostram nada, são espelhos que resguardam o interior das torpezas do dia.
Há ainda as quadradas; as quebradas; as consertadas de última hora; as definitivamente sem conserto.
Mais intrigante ainda são as pessoas às janelas: uma velha solteirona e magricela,um senhor de bigodes largos e poucas esperanças, uma lâmpada amarela, lembranças, crianças.
As janelas das meretrizes,dos aprendizes… Há silêncios que dizem tudo. Discussões acaloradas, brigas, intrigas, velórios.
Um pai angustiado, um marido traído, um filho que chora num canto qualquer; um taco de pão, migalhas no chão, sangue e lágrimas.
A música não pára, taças, vultos coloridos, sorrisos, gritos agudos, um seio suado, um beijo roubado.
As janelas são cicatrizes!

por Sérgio Araújo

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Qualquer dia

 
Quando sair na chuva
Qualquer dia
Desses dias de sair
Dia de ser
Dia desses...
Eu então direi
O que ouço 
O que sei
Direi da estante
Cheia de livros
Dos ingressos antigos
Daquele bilhete de viagem
Já te falei da carta?
(que não enviei)
Do cartão da turma?
Tua foto no panfleto
Um manifesto
Meu poema de protesto
Volta e meia
Ainda saio na chuva
Quem sabe 
Te vejo de novo
Olho no olho
Escrevendo versos silábicos
Incertos
Secretos
Concretos.
por Sérgio Araújo

domingo, 24 de maio de 2009

Noturno

Uma pequena chama navegava tranquila sobre o óleo transparente da lamparina. A penteadeira, além da claridade, exibia orgulhosa um vidro de Diamente Negro, um pente de tartaruga, duas borboletas de porcelana azul e um velho almanaque do Biotônico Fontoura.
Era um pequeno quarto, com cama colada à parede branca, um colchão de palha coberto com o lençol amarelado pelo uso, um urinol e as roupas de ontem penduradas num prego atrás da porta.
- É no pé da máquina - dizia orgulhosa, referindo-se ao trabalho que sustentava o casal.
Justiça seja feita, era a melhor modista da cidade. Mas, se o fato de costurar bem lhe trazia fama e freguesia boa paga, ela andava cansada, resmungando pelos cantos e nem sentia mais vontade de frequentar a casa de Dona Miúda nos domingos à tarde para um café com bolo e recordações.
Sentia-se triste e solitária entre velhos e novos amigos. Até para ele, seu primeiro amor, não mais contava os causos da infância, as aventuras no pomar do avô e tudo o mais que fazia a alegria daquela vida tosca.
Um dia, cansada de tudo, olhou para as estrelas naquela noite sem lua como se fosse pela primeira vez e soluçou, como numa ladainha, aqueles versos de criança que fizera há muito tempo numa noite como aquela.
Sozinha, recitou bem baixinho até que, lentamente, fez-se em palavras pequeninas e frágeis como nuvens de letras que agora voavam ligeiras com suas asas leves de libélula em direção à Via Láctea.
por Sérgio Araújo

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Teu tema

Parece que foi ontem
O teu braço em minhas mãos
O relógio
E você sorri
O teu rosto
Uma rima
O teu oposto
Você ainda me vê?
Eu ainda sou o teu dilema
O teu tema
Ainda te vejo
Breve
Nas luzes coloridas
Na noite que te esconde
Num bilhete
Onde?
por Sérgio Araújo

terça-feira, 19 de maio de 2009

A estrada

A estrada era permanentemente coberta por um céu anterior. Logo que chegou por alí, avistou o vasto deserto com o seu clima ameno, levemente aquecido e acolhido por uma brisa alegre e perene.
Não desejava caminhar, apenas queria sentir o ar acariciando sua pele enquanto divisava ao longe um arbusto verde em folha, em cujos galhos calados, suspirava a ave noturna.
Não havia caminhos outros que acorressem às impávidas construções monolíticas que erguiam-se à sua frente, pois o tempo é efêmero e corre numa velocidade de mãos unidas, numa luz igual e envolvente, pactuando com a natureza onírica do lugar.
Não! Definitivamente ele não era um ator confuso dizendo as falas soltas enquanto o pano caía e o espectador mais atento dormitava sobre um colo prateado.
- Come este fruto seco em plena terra com cheiro de terra - disse-lhe o guia e continuou - seus planos foram desfeitos pois o rumo é infinito e a incerteza é o destino.
- E aquele velho calendário? - Indagou.
- O tempo é agora! Sentenciou - embora as luzes artificiais atenuem teu desencanto, esta estrada é deserta o suficiente para te prender em suas léguas sinuosas.
Foi! Devagar caminhou entre veredas. Viu alhures as crianças no terreiro, os pregoeiros a soluçar maravilhas e as mulheres nos afazeres coletivos.
Agora posso voltar - pensou.
Mas viu-se novamente imóvel, perdido em pensamentos enquanto um cão rosnava, sonolento, ao seu redor.
Virou-se, olhou em volta e sorriu.

por Sérgio Araújo

domingo, 17 de maio de 2009

Cartão postal

 
Aquele era um dos poucos museus da cidade que ainda não havia visitado. Portas abertas, casarão centenário, fachada neoclássica. Como tantos, perdido nos corredores estreitos da cidade católica, caótica e bizarra.
Era uma noite como outra qualquer, exceto pela quantidade de curiosos, cantores, atores, poetas concretos e anexos. No meio de tudo, o poeta e sua musa: uma nota perdida da sinfonia de Wagner. E a ela, diz-lhe à moda de Goethe: "Vinde, doces ilusões que tanto amei na clara manhã da minha vida"!
Um olhar irrompeu o frio néon e atingiu em cheio, por entre as mechas que teimavam em esconder seus olhos, o brilho sonoro de um sorriso fresco e simples.
As luzes vermelhas das lanternas de freios corrompiam o cristal abarrotado de Frau milch.
- O que você quer dizer quando diz que já fez de tudo e só lhe resta fazer de nada?
- Zaúm!
- Você me entende Fräulein? Venha me ver amanhã e te darei as vozes da Bahia. As vozes dos antigos poetas, dos prédios abandonados, das igrejas frias, das águas que escorrem pelas encostas e molham os meninos, descalços à beira mar.
Do púlpito, o velho poliglota fala as suas palavras. O agro vitral desdenha do flash e sobre as cabeças da assistência, reluz de viés.
Do outro lado da rua, a tua lua segue os transeuntes com agilidade e indica o itinerário: vai pela vitória...
Mais tarde, era só reler aqueles poemas antigos que diziam de tudo e de nada e, como num encanto, a doçura voltava.
Aquela era uma das poucas memórias da cidade que ainda não havia contado.
Holzstatuette mit Goldüberzug. Der König Tutanchamun
por Sérgio Araújo

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Minha mão poética

Minha mente concreta
Não desliza no papel,
Salta.
Saculeja indomável
Sobre pautas paralelas.
Minha pena discreta
Sobrevoa palavras
Já escritas
Bafejadas pelo tempo,
Desvendando ritmos e dimensões.
Minha mão poética
Tem vontade própria,
Gosta de espaços infinitos
E tinta preta.
por Sérgio Araújo

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Na porta

Parada
Na
Porta
Suporta
Ereta
Beija
O
Vento
Que
Te
Lança
Pra
Dentro
Suposta
Seja
A
Porta
Que
A
Lança
Não
Importa
Ventania
Adentra
Suplica
Que
Te
Beije
Na
Porta

por Sérgio Araújo

domingo, 10 de maio de 2009

À sombra do vento


Fala dessa história
Que gira o sol do girassol.
Diz que à sombra do vento,
Como um espelho de duas faces
Um ser é um nada,
Clandestino!
Com a cabeça na terra
E os pés no espaço.
E nos lábios,
Um sorriso descontrolado.
Dia-a-dia
À procura de um raio de sol
Numa esquina,
Num disco de rock
Ou num livro de Jack London.
Conta em que janela se passa essa história,
Para que eu possa dizer-te
Que danças sobre pedras quentes
Com braços e pernas de serpente.
E a felicidade
É um pêndulo,
Pendente
Como a espada de Dâmocles.

por Sérgio Araújo




sábado, 9 de maio de 2009

Versos novos!


















Perdão pelo poema que não escrevi!
Quem sabe, seja a noite
Com suas sombras esquálidas,
Talvez seja o dia que me prende
Em seus espaços retalhados.
Perdão!
Pois navego como tantos
No mar de fragmentos,
Frases, fontes e formas.
Perdão, enfim,
Por antever que amanhã
Poderão perdoar-me
Pelo não dito
E que, apesar disto,
Nascerão livres de toda a tristeza,
Versos novos e sonoros
Salpicados de fantasia.

por Sérgio Araújo


terça-feira, 5 de maio de 2009

Decifra-me ou devoro-te!



Para quem não decifrou o poema em código ou o fez e quer conferir, eis aí o poema original.

Vê essas tardes?
Que desprezo exalam
Nestas folhas sonolentas, oscilantes;
Neste céu,
            Metálico céu.
Ouve estes sons?
Quão falsos soam.
Que terrível prisão
Nos acolhe em seu seio de pedra.
Quisera
         Voar
             Com os pássaros
E, súbto, precipitar-me ao chão
Para num sorriso
De corpo inteiro
Fundir-me à terra
                      Numa manhã de sol.

por Sérgio Araújo
           

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O gesto!


Parou em plena avenida. À primeira vista, apenas podia distinguir três lumes que incidiam brancos. Mesmo que recortadas, essas pequenas e nervosas formas, fundiam-se num corpo ao fundo que se dissolvia, branqueado, branqueagudo sob um céu enegrecido em escuro contraste com a luminosidade pueril: como uma corexplosão no abismo, uma imagem ritmada, quase espasmocênica.
Pensou que podia voltar para casa e escrever sobre aquele gesto novo que nenhum ser humano ainda havia experimentado e que em seu íntimo sabia que existia. Precisava apenas explorar as dobradiças.
Sim! Todo corpo é único e preciso, mas diverso no “eu” que generaliza e submete a determinados signos universais.
Ah! Um gesto cerebral!
Como pode ser? Pensou enquanto gesticulava ligeiramente. Codificar, Eis a solução.
Todo esse gestual concreto pode libertar, - pensou.
Não! Não é possível fazer-se claro aos cidadãos agônicos que em vão perambulam, reticentes em suas retículas ácidas, diagramadas, cada um ocupando o seu espaço programado.
Tentou ouvir sua própria voz, mais uma vez, para saber se ainda podia falar. Olhou em volta e prosseguiu vasculhando rostos, perfis, silhuetas, diodos e dióxidos.
Disse? Não!
Lentamente, como quem é conduzido pela falta de luz, escorregou como um relógio de Dali entre a multidão ácrata e continuou até dissolver-se completamente num ponto.
Codificado, mensurável, agora estava livre para continuar imune aos apelos de um sentimento humano. “Demasiadamente humano”.

por Sérgio Araújo