segunda-feira, 27 de julho de 2009

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Raso

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O sol tostava a minha pele. Os meus olhos, impregnados de azul, com muito esforço reconheciam o marrom que manchava a aridez do chão. Acolá, testemunhas das agruras da terra, calangos assentiam solenemente sobre a rocha agressiva.

Também vi o tempo escondido na tez ressequida das crianças, enquanto ouvia o grito desafiador do carcará que pairava solene sobre a terra inóspita e agreste.

A sede ardia. Uma cadela manca, em pele e osso passou alheia à intromissão desajeitada dos tênis empoeirados. O Raso é tão profundo na amplidão da paisagem.

O espinho não fura o couro do gibão. A cavalgada é lenta entre galhos secos. A terra de Lampião, luz, fifó. Terra de repetição, jagunço, morte na curva da cova.

Seu Rufino, ainda menino viu as retiradas e viajou as léguas do Santo, cumpriu promessa, gesso e cera pro museu das lapas.

O sol ardia no azul e amarelava o chão de pó. Continuou assim até desfazer-se em silêncio dourando tudo, silêncio profundo cortado por grilos e pios.

 

por Sérgio Araújo

foto-flickr-Glauco Umbelino

domingo, 19 de julho de 2009

A Praça

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Jazia ali, cinematograficamente estendido sobre os paralelepípedos da rua. Ao seu redor, uma pequena multidão de curiosos. Eram donas de casa sujas das suas rotinas diárias e incansáveis na repreensão às traquinagens dos filhos, os feirantes estabelecidos no marcado municipal e que, na correria, traziam ainda nas mãos calosas, as mercadorias
que comercializavam no exato instante em que o fato acontecera.
Para lá acorreram também os populares, cidadãos sem rostos e de história comum. Gesticulavam enquanto davam fim a um assunto banal antes de se apresentarem ao local da tragédia.
O cego cantador levantou de sua esquina predileta, esbarrou no crente Deusdeth que atirou para longe a Bíblia Sagrada como um pássaro preto alçando voo no coqueiral.
Até o mascate abandonou às pressas a sua mala da cobra e pôs-se em marcha paralela aos dois soldados rasos e um delegado que avançavam autoritários rompendo a multidão.
O Dr. Sócrates, médico respeitado mais pelo seu caráter que pelos conhecimentos da medicina, caminhava apressado segurando a velha valise de couro preto  puída e de alças redondas.
Nessa altura, garrafas de cachaça corriam de mão em mão sobre as cabeças na praça.
Sobre a marquise da padaria acotovelando-se, um bando de edis tresloucados pela quantidade de eleitores ali presentes, exortava o povo a ouvir um improviso de oito páginas que já começava a se dissolver em palavras toscas tecendo uma peça tragicômica que só a ignorância e a rudeza da vida interiorana pode revelar.
Num instante, o círculo se fecha mais e mais, a multidão aproxima-se do corpo inerte, o murmúrio aumenta. De repente o silêncio. As cores se desmancham desaguando em sépia, a cena retida numa pequena superfície retangular rotaciona para a direita flutuando sobre um fundo escuro.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Cavaleiro torto

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Um cavaleiro torto

De silhueta neogótica

Percorre o caminho, sorrateiro

Na lama putrefatalenankin

Filho da arca pulga tricha

Esbilte pilotron sanguessuga

Mimética solução humanóide

Lesa-forma vil vivente

Um cavaleiro de longa esfera

Filho da arca sila troncha

Caminha indeciso

Na prima lama dicotômica

Cata tenso, na orla empolada

Finos fios de palavraspontes

Para dizer fundante

O que nunca fora antes.

Um cavaleiro torto

Pouco

Intrépido arcanjo rococó

Arremata a vida num poema

Como laço ou como nó.

 

por Sérgio Araújo

 

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Tempo curto

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O tempo é curto

O tempo é mudo

O tempo não cabe no meu mundo.

Eu curto o tempo

Mudo num segundo

Meu mundo não cabe no tempo.

 

por Sérgio Araújo

Foto:out of time - flickr - alicepopkorn

domingo, 12 de julho de 2009

Azul

margarita azul frontal. flickr. alfaneque
Capítulo XXII
O anúncio fixado na porta de entrada da casa de V escrito em fonte Old English informava, solenemente, a chegada do casal, em lua de mel há uma semana.
Pela porta semiaberta penetrava um réstia de luz do sol que imprimia, em tons dourados, um triângulo retângulo no chão de madeira polida.
Sentada, bordando um pano qualquer para matar o tempo, V suspirava enquanto pensava na recepção: flores do campo, cheiro de jasmin, música alegre, bebida farta e borbulhante, salgados e doces, ah! muitos doces.
Iluminado, o jarro de porcelana verde refletia a luz do sol em raios frios e animados projetando na parede uma infinidade de pequenas partículas multicoloridas.
V não era bonita como a noiva. V tinha sonhos românticos como toda jovem de sua idade. Mas V não era bonita como a noiva. Era inteligente! Na verdade, era muito mais inteligente que sua irmã. Não fosse pelo "defeito", como costumavam dizer referindo-se ao fato dela não poder andar, coisa de nascença, V certamente seria a preferida do, agora, marido de sua irmã.
Em sua insignificância aparente, ela era extremamente produtiva. Além dos cuidados da casa, ela escrevia. Amante nenhum nesse mundo teria escrito cartas e poemas tão belos quanto os que V moldava com lágrimas, na matéria indiferente do papel, em suas eternas noites de insônia.
V é tão jovem!
Mesmo que os verões esbanjassem claridade e velocidade às vidas daquela casa, V era inverno! Não que deixasse a alguém perceber a sua tristeza, ela simplesmente congelava em sua solidão enquanto ria e conversava sobre os dias e as coisas. No seu exílio, criava. Escrevia sobre vales verdes e serenos, sobre montanhas cujos picos alcançavam as nuvens e as águias faziam ecoar seus gritos pelos ares, descrevia terras imaginárias, lagos tão extensos, oceanos tão profundos, pessoas tão belas e boas quanto ela.
V é tão bela!
Bordando, ia criando. Criando uma festa de casamento, um amor delicado, uma figura que escapava do seu pensamento toda vez que tentava vislumbrar um rosto, uma mão, cabelos ao vento, sol no rosto, sorriso. Via sem detalhes, como quem adivinha. Mas, mesmo assim, ela queria poder dizer que amava, que sonhava e vivia.
Não importa se eram tantos os presentes que enchiam o seu quarto de uma graça comprada aqui e ali, sem identidade, apenas coisas brilhantes, felpudas e sonoras. V queria viver para além daquele quarto e sentir-se plena nas coisas do mundo.
V é frágil!
Diluindo a triângulo e espalhando luz por todos os cantos da sala, entra o casal em plenos sorrisos e conversas. Acorrem todos, o som se espalha como a água sobre a toalha da mesa, reluzem os metais, gestos e frases, palavras e respingos
Distante daquilo tudo, lenta e silenciosamente, a mão escorrega sobre o peito e repousa suavemente sobre o pano. Fechados os olhos, V agora jaz, pequena flor sobre uma rocha bruta.
Fecho o livro e vou dormir, sereno, como uma melodia de Bossa Nova.
 
por Sérgio Araújo
foto: flickr - alfaneque

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Esquina

Van Gogh

Agora que estamos sós

Juntos, mas distantes

Como numa esquina

Sem um ponto de encontro

Vejo passar o tempo

Olho pro céu

Gotas de memórias

Molham meu rosto

E não há nada que eu possa fazer

Nem ontem

Nem hoje

Eu quero estar com você

Naquela praça

Depois da esquina

Eu não sei...

O tempo diz não

E mesmo que o desejo

Seja a bola da vez

Eu não te enconto

Depois da chuva

Com o sol no rosto

Naquela esquina.

 

por Sérgio Araújo

imagem: Van Gogh-Boulevard de Clichy

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Olhos

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Soluçou rompendo o silêncio da noite. Não há luz, a escuridão deixa suas marcas no espaço onde os olhos das vagas velas vasculham em vão o vão impuro, repleto de sonhos que ainda resistem às mãos que penetram os cabelos finos, como os córregos nas florestas de Antária.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Torturado

Com o corpo parcialmente escondido atrás do poste de madeira, espiava a rua à sua frente, nem se deu conta de que os seus algozes, nesse instante, já faziam o cerco e se aproximavam perigosamente da sua posição.

Parado! Pro chão, pro chão!

A sirene estridente da viatura preta percutiu em sua cabeça.

Capuz, pontas dos pés arrastadas nas poças d'água, porta aberta, corpo jogado no banco traseiro, motor, fumaça no escapamento, pneus cantando...

Num baque, espirrando água para todos os lados. Ei-lo sentado na cadeira de ferro, daquelas antigas que eram doadas pelas companhias de bebidas para servir às barracas de festa de largo, enferrujada e meio torta em uma das pernas.

Uma cela de 9m². Num canto um aparelho de televisão exibia Xuxa Só Para Baixinhos. A cada par de horas, em alto volume, ressoava um pagode romântico daqueles cuja banda tem mais de 12 componentes.

A situação era tão absurda que tentou suicidar-se implorando para assistir um Globo Repórter inédito sobre dieta saudável, mas seus carrascos tinham outros planos.

Na semana seguinte, desfaleceu após sessões diárias de propaganda de loja de eletro-doméstico, materiais de construção e supermercados.

Enlouquecido tentava engolir o acarajé de caixinha no intervalo entre duas doses de vodka fabricada no interior de Sergipe, numa tentativa desesperada de pôr fim àquele sofrimento terrível.

O barulho do pino de ferro arrastando no chão de pedra, a luz que escapa para dentro da cela vai revelando aos poucos, num canto, um corpo que mais parecia uma mancha, uma bolha pastosa e esverdeada.

Ao lado,  escorregando do que parecia ser o bolso de uma calça de tergal, engosmado, o cartão de crédito de uma butique de sacoleira, uma foto dele com pose de Rambo na guarita do Tiro de Guerra e uma mecha de cabelo de Margarida, a periguete que conheceu no auditório do programa do Bocão.

 

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Upload

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Sentado em frente ao monitor com os olhos fixos no centro da tela esperando algo ou alguém, absorto. Só, em sua inutilidade semanal, não percebeu a vigilância fria e panótica da Webcam que penetrava em seu corpo como um raio-X e, sondando os seus mais remotos pensamentos, impingia-lhe uma alienada exposição.

- Alô! - rompendo o silêncio - uma voz aveludada, um sussurro de fêmea etérea.

Como quem desperta de um sono profundo, foi, aos poucos, se acostumando com o ambiente nebular do display até sentir o impacto das mãos com o teclado, abaixo.

Digitou alguma coisa, sem nexo, meio parecido com o vernacula utopiensium e virou-se em plano médio americano procurando a webcam que, agora, deslizava tranquilamente num ângulo de 180º.

- Alô - repetiu a voz etérea. - Alô senhor! Favor digitar seu user name e password enquanto confirmamos o contato visual. Lembramos: esta fase do processo é muito importante para preservar o link enquanto fazemos à transliteração dos dados. Aguarde, por favor.

Atordoado, ele tentava corresponder às exigências da máquina enquanto se maldizia por não ter lido os "Termos de Uso" e a "Política de Privacidade", agora era tarde, o dedo ágil digitara as últimas letras da senha resvalando num clic instintivo para enviar.

Enquanto aguardava novas instruções minimizou a janela do Player e pôs-se a observar atentamente o caos alfanumérico que enchia a tela e contornava um pequeno campo retangular, quase um banner oco, revelando o branco excessivo do cristal líquido.

- Agora, senhor, por favor digite uma frase qualquer para que possamos iniciar o download - carinhosamente pedia aquela voz serena que, de maneira alguma podia ser uma gravação dessas que existem aos montes nas telecomunicações.

- Mas que raios de frase eu devo escrever? - pensou! Estendeu os dedos sobre o teclado e permaneceu nessa posição até que, como um relâmpago, cortando os seus pensamentos desordenados, surgiu: " o que você quer de mim?" Então, com os dedos pesados de ansiedade, digitou.

Voltou os olhos para o monitor que parecia mais Gaussian Blur do que estava antes.

- Senhor?  Agora permaneça imóvel para possibilitar uma melhor performance do scanner.

Pela primeira vez, enquanto permanecia congelado numa pose de 3x4, irritou-se com aquela situação. Afinal, o que queriam com ele? Não bastavam os updates daquela semana? Acaso não teria solucionado os problemas de instalação do novo pack? Não teria reportado aquele bug? Nada parecia estar "batendo".

- Senhor? The key, the end,  the answer!

Foi então que entendeu tudo aquilo. Claro, só podia ser o sinal que esperava. Imediatamente iniciou o upload a partir das memórias mais remotas da sua vida que agora eram transmitidas através de um raio caleidoscópico para a ávida lente da webcam que se aproximava num zoom ótico 

 

por Sérgio Araújo