segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O menino e o poeta

Em vagas manhãs
Por onde o tempo recorta silhuetas de papel
Nuvens jovens
Percorrem os caminhos dos pássaros.
Em tardes infinitas
O menino sonha
Os sonhos de vento
Rasgando as copas das árvores
Numa melodia anônima.
Numa noite intensa
O poeta vê o invisível código
A trama íntima
Ao desenhar manhãs
Com tintas de tarde
E noites profundas.
por Sérgio Araújo

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

XXI


Volver aos arcos do nó
Revirar
As tralhas
Respirar
Entulho
Tronco
Trambolho
Inocente certame do olho
Na fria agonia
Da
Q
U
E
D
A.


por Sérgio Araújo

sábado, 6 de dezembro de 2008
















A LUA E A ESTRELA

NÃO CABEM NUM PONTO

NEM ALFA

NEM ÔMEGA

APENAS O TEMPO

COMO AS CARTAS DE UM BARALHO,


EMBARALHADO,

EMBARALHA TUDO

NUM PONTO

ENTRE A LUA E A ESTRELA.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Navegantes

Senhores navegantes,
Parem o barco!
O perfil cinético das borboletas azuis
Circunavega seus corações intranquilos.
Adeus
Cordas soltas à maré!
Atlas, contas do mar, sol, anzol
Rebrilham nos olhos de peixe
E óleos ancestrais.
Canibal à praia!
Âncora veloz ao fundo azul.
Senhores navegantes,
Olhai o fundo fosco da maré azul e
Rasgai papiros ilustrados,
Mapas
E restos semânticos
De bulas pós-ardidas.
Senhores navegantes,
Libertai as palavras-coisas
E surgirão versos andantes e rimas-remo
Na cara suja da normalidade.

Por Sérgio Araújo

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Canto I

Aquela terra era assim: rasgada pelo vento. Correnteza na solidão de palha e barro das margens empoeiradas.
Do homem, do contador de histórias tristes; do homem cortado pela metade, o andarilho de um só caminho de seixos afiados, em pele e osso; do mapa do mundo desenhado nas curvas da picada; na lama e na fumaça pálida dos fins de tarde.
Daqui e dali, numa e noutra voz o lamento das rezadeiras, porque a morte é sina ou bônus de vida para os que ficam e não choram, apenas cantam ladainhas.
De todos os que olham, apenas as crianças enxergam em cada olho que lhes espantam, que lhes condenam, um sofrimento calado e uma dor que sara no correr com as rodas na estrada estreita.
Para quem o dia é coisa que se pode contar, mais um tanto vem juntar-se a todos os outros e seus filhos ainda dormem sobre folhas.
Suas mulheres apenas pertencem a alguém e não falam porque não ousam falar, sorriem! E na timidez entreaberta das bocas murchas, mostram um taquinho de beleza que não aceitam possuir, pois são as mulheres do rio, do carvão e das ervas que crescem sob as sombras das saias em solo fértil.
Seus meninos e meninas, prole comum dos terreiros, das camas de um quarto frio e escuro; até que seja dia e esperem sentados, num canto, que o desejo de crescer lhes corrompa e lhes atire cegos, tortos ou dilacerados para os confins de um mundo feito de pau, lata e garrafas vazias.
Assim apagam-se os dias e, com eles, vão os velhos para as sombras das paredes sujas de memórias; vão para dentro e se recolhem nas lembranças intercaladas na chama agonizante das lamparinas que lhes acendeu na infância, incendiou na juventude e transformou em cinzas os sonhos loucos de voar com os pássaros, que ainda cantam ao longe.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 28 de novembro de 2008















A contragosto,
Desgosto dos traços e troços
Da minha vida útil.
Desinventando memórias,
Destroçando histórias,
Malamanhado em terras alheias.
Sons inaudíveis movem e renovam
A volatilidade da minha alma vasta
Redesenhando trilhas,
Segredando versos nas margens do dia.

por Sérgio Araújo

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

"Galinheiro"

Quando criança, ele estreou no "galinheiro" do Circo São Jorge.
Era uma daquelas peças, capaz de provocar lágrimas até nos cachorrinhos amestrados.
Pantomimas à parte, a arte de representar afrouxou os corações e escancarou as goelas para os festins encharcados de vinho amargo de ponta de balcão.
O palhaço nem sempre tinha razão na graça de esconder sob a espessa maquiagem, um espírito de criança.
Lindalva, a moça das cordas e dos arcos, desfez casamentos, provocou duelos ao amanhecer e fugiu com o anão para não ceder aos apelos eróticos do apresentador espanhol.
A música abafada da velha clarineta inspirou farmacêuticos, padeiros e aposentados; criou filarmônicas e construiu maestros que, rapidamente, voltaram ao anonimato dois meses após a rumba fatídica que pôs fim à cíclica lona verde.
Como era gostoso aquele lenço estampado a deslizar carinhosamente sobre o ombro, vindo daquela mão doce, pequena, que convidava a bailar numa tenda de ciganos ao som de singelos violinos e terminar perdidos, enamorados, sobre um rochedo qualquer, à luz da lua, acariciando aquele corpo dengoso de dançarina dos trópicos.
Fantástico seria viajar com a moça do trapézio; morar em sua barraca e, à noite, furtivamente, olhar seu rosto de perto e enfim acreditar que aquela que ali estava era a mesma musa aérea que com um simples gesto fazia sangrar as unhas do domador.
Subir e descer ladeiras era muito fácil, ainda mais se acreditássemos poder subir nos ombros do homem com as pernas de pau e, lá do alto, mijar na cabeça do inimigo predileto.
Agora, a vida pôs-se a andar de muletas, põe seus óculos de ponta de nariz e se dedica a contar histórias de quando estreou no "galinheiro" do Circo São Jorge.

por Sérgio Araújo

domingo, 23 de novembro de 2008

Um poema
Não nasce do nada
É tempo e espada
Um poema
Nasce na rua
Que não é minha
Nem sua
É pau e pedra
Na vida do poeta

por Sérgio Araújo

sábado, 22 de novembro de 2008

XXXII

Deixarei
Que os espaços
Todos preenchidos
Sejam solavancos
Em meu corpo de avestruz
E em minhas pernas
O que reluz
Nestes espaços,
espaços todos
Sejam espaçopernas
Que perneem
Preenchendo mundos.


por Sérgio Araújo

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Recife

Por cima

uma ponte


Por baixo

S
a
l
t
a
m

Cocas tamanho família
E entopem
Com tampinhas
As malhas da rede
Enredada
E atada
Por nervos ponte-agudos
Enquanto
foge por ali
Um casal de apitos
Na avenida boa vista
Saqueadores de caldo de cana
E um velho poste
No ponto da torre cinza arcaica

Daí em diante
Ausente
O sol
De par a par
Pardo
Pardeja
Em lívidos olhos de janela.
Fria
Como a água matinal
(a janela da casa verde)
pinga
cacos de vidro fosco.

Por Sérgio Araújo

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Poesia

Poesia
Idéia vaga
Presente,

ostensiva
Grata.
Vertente literal primária
Inconsolavelmente refratária
Poesia
Grata
inerte
Verte
Refrata
A lítera morte que lhe tecem!
Dos cânones da língua,
pioneira,

poemassiva.
Poesia,

forma tão ativa
Híbrido cânone,

linguitísica
Bossal,

cinestésica total
Cafetina,

teleeletroniconcretina.

por Sérgio Araújo

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Efeméride


Do alto dos seus últimos andares
A cidade passeia tranquilamente.
Sob as cortinas,
sobre os altares,
Em seus vales, - silos de serpentes -
Repousam frios em seus azares
Generais intransigentes,
Bundas e bustos,
infernos capilares,
Bostas de pombo – renitentes -
Salpicadas no bronze esverdeado dos Cézares.
Braços de boneca,
Bola de gude no asfalto,
Alguém morreu ali na esquina colega!
Um cafezinho por favor!
Táxi!
E esse ônibus que não vem,
que horror
Catarro nas frestas de uma avenida ensolarada.
No chão da cidade,
A cidade passeia tranquilamente!

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Aiabá

Aiabá é sempre um galho entre o Nilo e o Amazonas, subiu aos céus em seu espelho caboclo-terra e forjou das ondas da FM-cordas, o cordel satírico do Assaré. Um índio, filho de Funai-mata-mata, requer alforria e bate tam,tam,tam na pedra Içu-cabeça de pau oco. Aiabá sorri no V.T. e arriba...
Lá das nuvens açoprateadas, ela nos conta a história de como sua mãe sobreviveu à tribo do feiticeiro Edi-pô.
Arequenas, trombeteiros, galopam seus cavalos marinhos na correnteza bosta-arquivelhas do rio das tripas.
Eis Aiabá, maravilhoso cidadão dos out-doors. Contam que Aiabá, ao nos visitar, teria feito voar sobre o Abaeté, as cuecas molhadas do tio Sam. Abá Kura-kura. Fogo nos cabelos verde wave e aqui jaz um piro-piro que em vida cruzou o atlântico em busca da palha de aço dos Jesuítas.
Aiabá visitou o ano 1274 e rasgou a Suma Teológica em ato puro. Antes, estivera com Heráclito e Éfeso lhe era cara e bela. Podia-se ainda passear, ir às olimpíadas ou participar dos freqüentes concursos de charada promovidos pelo Comitê Executivo do Templo de Ártemis e no ano 500 a.C., ganhou o concurso em parceria com Heráclito. Eis a charada: “Concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”.
Saá-Ká-Tá – certa vez viu Ianomâmi sentado, meditando. Era meio-dia e Ianomâmi, primogênito do Pau d`arco, crispando a água brilhante com as garras de uma onça pintada, disse-lhe, citando Maiakovski:
- “Os jovens lutam contra esta canonização dos escritores-guias, que pisam com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova que liberta a arte”.
Riscando a areia com um osso de preguiça, Aiabá respondeu:
- a palavra em movimento é minha borduna em riste e minha palavra e a minha borduna são um.
- Pois bem – disse Ianomâmi – eu corri a minha mão sob a terra, pisei a lama e moldei com cuspe este pote à minha frente.

Vê? Eu o atirarei ao rio e daqui há dez anos eu o reconhecerei. Ele sou eu!
Aiabá partiu e arrastou consigo a louca dança da poeira, veio ver o Robot-rato do novo século e embora não houvesse tempo para entregar-se a brincadeiras pueris,entortou três antenas, quando sobrevoou o cinza-morto da aldeia próspera. Aiabá bateu em ré-tirada e agora que nos deixou, ainda vive na matéria pretoquente das ruas, dos becos, sobrevivem ainda os seus átomos-cor-silábica a repetir eternamente, onde quer que haja sol, o “Da” que escapou dos lábios do poeta noite a dentro.
- Boa noite.
Responderam aliviadas, as pessoas que se acotovelavam na pequena janela do sobrado. Era tarde e já não havia mais o que fazer na rua, a menos que se queixe ser notado por quase todas as pessoas em suas janelas ou pelas velhas barulhentas e pouco amáveis diante de um estranho que, de passagem, ensaiou um cumprimento. Decididamente aquela era a polis cor de esmeralda com seus raros aros de marfim.
Um grupo de meninos jogava sinuca com bolas de gude num tabuleiro inclinado. Escureceu: dois guénos próximos ao muro pintado com flores do jardim de Montezuma, entendiam a situação com seus pequenos olhos tardios.
Aiabá Pensou:
- Mas como pode um poema atravessar as cordas do tempo?
Neste instante, interveio uma de olhos negros como os raros cristais da Salmônia e com seu corpo, sua flauta e seus cabelos, voou para pegar com os dedos livres, cada resto de cor que jazia nas cordas. Eram duas a tirar as cores das cordas, Nuas. A noite levou os aprendizes e seus martelos para além das bigornas reluzentes, e se podia cantar.
Aiabá concordou e ouviu o poeta que dizia:
- eu sou limalha em plena vida. Desejo apenas a insensatez, não me é dado participar de tua falsa segurança, nem quereria eu correr tal risco.
- Sim, és um louco! – disse-lhe Aiabá. Mas, Quem te julgará, Se os autos do teu processo ainda não foram lavrados?
- Pobre diabo! Que a justiça te seja cega e desejará mil vezes ter sido condenado.
E Aiabá visitou mais uma vez o cenário em que tudo começou. Ali, bem ali, onde o sol penetra entre as colunas e incendeia as pedras do chão.
Sobre o mar, duas ou três nadas sopram as espumas das ondas.

O sol está bem alto, na praia ouve-se o vento e vê-se as pegadas que não levam a lugar algum. Entardeceu: a noite explodia sobre sua cabeça como um balão de gás e espirrava confetes maduros em sua roupa de domingo.
Naquele tempo ainda se podia andar pelas ruas sem despertar a cólera dos homens da noite. Um guarda noturno vigiava as fortalezas decadentes e apitava para merecer suas migalhas postas às portas: um pouco de vinho, dinheiro e as nozes recusadas por alguma criança. Por algum tempo, deixou seu pensamento voar em meio às impressões daquela noite. Revirar as pedras e andar pelas ruas para celebrar a Katharsis enquanto as Bacantes erguem-se dos bancos de pedra à beira dos igarapés, douradas e sonolentas a reclamar cada uma à sua maneira, suas porções de paraíso, suas noites de sonhos.
Alguém declamava:
- Ah! Viajante maldito. Jamais poderão acorrentar-te a esta nau que conduz a todos por caminhos conhecidos, tua carroça é a minha. Ei-la à deriva, disparada pelos campos, cidades, vilas, rios que não te prendem em seus leitos de argila. Solta estas rédeas, atira-as ao vento e grita para que te ouçam: eu possuo o tempo bem aqui na minha mão. Ah! Vrêmia maldito, não te conhecem nem conhecerão antes do tempo.
As lâmpadas dos velhos postes de madeira iluminavam aqui e ali, luz métrica e volátil como os capinzais das orlas das estradas e lá está ele, quando ressoa pelos quatro cantos:
Creia-me, tua imagem, eu a vi projetada ainda ontem, como uma sombra em plástico transparente. Que tens a dizer?
Aiabá caminha agora, atreve-se a chutar uma lata vazia sobre as pedras da calçada e fala baixinho:
- Que faço aqui?
É como se estivesse apoiado num parapeito estreito a olhar sobre a marquise. Atrás, sob a mesa, estão os pés de ontem nos chinelos de amanhã. Continua a sua caminhada que agora ganha ritmo com o bater dos pés em marcha. Ouve alguém que passa com muita pressa e passa, passa, passa...
Certas vozes conhecidas, murmúrios que o tempo não dissipara, ondulavam em sua mente. Restos de diálogos entrecortados por visões há muito esquecidas, batiam como tambores, pulsavam até deixá-lo tonto.


Eu escrevi este conto ou (poema) faz algum tempo. Espero que gostem.

sábado, 18 de outubro de 2008

Splat
plek
tam tam tam
a máquina
comeu a poesia ao óleo
Você sonha
dissonha
e atarraca o dedo
na CATRACA

Plek
Splat
Tam tam tam
castração
castra ação do dedo
que não mais indica
codifica
Mas
saque do coldre empoeirado
um poema
Q U E N T E L O M É T R I C O
para ler
entre limalhas
cuidado
Levanta e corre correcorrecorrecorrecorrecorre

que a esteira não morre
PARA!
PEGA!
PAGA!
Splat!
Plek!
A máquina
comeu!
Quero começar com um texto incerto
para as horas certas!
Um texto de "demórias"
Um Conto-canto pedindo desconto pelo não contado e cantando para não ficar calado!
Contam que poetas, loucos e professores são seres alados, vindos de um mundo fantástico onde as flores brotam das pedras e o leito dos rios, do puro brilhante, refletem as maravilhas que, estampadas na paisagem são o deleite diário desses seres levados.
Desde antes das cordas e das dobras do tempo, desde que a luz se desfez em pingos leves e coloriu o espírito do mundo, esses seres de outro planeta que jamais morrem, continuam suas vidas habitando nos corpos luminosos e, volta e meia, conversam com o mundo através da poesia. A poesia que o mundo transpira e que só pode ser vista nas pequenas coisas, nas intervivências.
Lá onde existe um oceano cheio de perigosos piratas malvados e heróis vingadores, onde as naus errantes singram incertas vagas e tremem nas calmarias. Saga de titãs a navegar no mar de silêncios.
Um corte no pé, ataque de sanguessugas e, de vez em quando, uma espiadela nas meninas tomando banho enquanto suas mães lavam roupas batendo nas pedras e cantarolando alguma modinha dos tempos de menina-moça.
Ultraman, super-heróis das figurinhas de chiclete, calça coringa e um dia todo para brincar de Bang-Bang com direito a coldre e revolver com espoletas de papel. Entender a língua do “P”, a língua falada em Alfa de Centauro ou em algum planeta visitado por Flash Gordon. Com ela faço e desfaço. Escuto segredos, construo cochichos, mando recados para o próximo passo.
Piso de barro é mais legal e, se chover, melhor ainda. Nada como uma bela falta, daquelas que nos atira para o ar e nos faz deslizar pelo terreno molhado, arranhado, sangrando e sinceramente convencido de que craque é craque!
Uma passadinha naquela calha do telhado da vizinha. Que maravilha! Ainda muito frio, mas daqui a pouco passa. É só correr, abrir os braços e sair chutando a água empossada aqui e ali.
Outra bica mais forte e logo aparecem os amigos para festejar. Depois, um banho quente acompanhado de um falatório interminável e a promessa de uma surra que nunca vem.

Em breve voaremos arrastados pela ventania dos domingos, em fins de tarde e poderei dizer-lhe de tudo o que sei da existência do universo, da causa das desgraças do mundo, dos medos e das injustiças; dos pensamentos ainda não pensados e da possibilidade de sonhar sonhos impossíveis, realizá-los na imaginação e escrevê-los para que outros possam sonhar os seus sonhos. Sonhos de papel, de carne e osso, de sorrisos e lágrimas.

Não contei as estrelas naquela noite, porque os sapatos machucavam os meus pés. A lua? Escorregou sobre mim com o nariz inchado e me proibiu de sair de casa. Mas eu queria apertar as estrelas inchadas com os sapatos da lua.
Naquela noite, o universo desabou sobre mim em um milhão de microscópicas partículas coloridas. Muitas cortaram a escuridão do meu corpo nervosamente posto sobre os sapatos metálicos da noite.
Outro dia, eu estava a sonhar sonhos de claridades e as infinitudes, quando três lumes incidiram brancos, recortados num corpo branco ao fundo, Branqueado. Branqueagudo sobre o mar enegrecido. Escuro contraste, corexplosão no abismo onde os pés passeiam rijos e calmos a percorrer caminhos na areia, descalços.

Não enviei aquela carta que te escrevi. Carteiro algum percorreu a nossa distância, mas você há de ter lido aquelas palavras distantes e tão próximas que enroscavam em sua pele como o corpo de um felino.
Contei de mim e de como eu sou o texto base de um plano simples, tão simples como a expansão de um astro milenolítico; que costumo destronar os Reis e passa-lhes a navalha sem pedir licença ao barbeiro. Contei sobre felicidade e como reparava quando tu dançavas sobre as pedras quentes com braços e pernas de serpente.

Eram montes, roças, verde perene, a casa estava no alto de uma colina. Decorei toda a geografia que havia no caminho, todas as serras e plantações de banana. Ao fundo, o rio amarelado pelas águas da chuva parecia querer cortar caminho subindo pelas margens altas.
Faz tempo que não te vejo. Há pouco era uma palavra: “Blanc”, uma metade do que hoje sou e o sonho de que numa avenida ensolarada eu pudesse deitar-me contigo sobre as flores da calçada.
Todo aquele vale era de um intenso verde metálico, com suas flores de auroras esquecidas nas incomensuráveis janelas e portas pintadas com as cores do amanhecer.
Ao longe, nas sombras do firmamento, pequenas nuvens furavam o céu como facas de ponta, velhas e afiadas.
Por toda aquela terra, de portas entreabertas ouve-se, silábico, monótono, o som das tépidas manhãs que se descortinam, clarisônicas!

por Sérgio Araújo