quarta-feira, 26 de novembro de 2008

"Galinheiro"

Quando criança, ele estreou no "galinheiro" do Circo São Jorge.
Era uma daquelas peças, capaz de provocar lágrimas até nos cachorrinhos amestrados.
Pantomimas à parte, a arte de representar afrouxou os corações e escancarou as goelas para os festins encharcados de vinho amargo de ponta de balcão.
O palhaço nem sempre tinha razão na graça de esconder sob a espessa maquiagem, um espírito de criança.
Lindalva, a moça das cordas e dos arcos, desfez casamentos, provocou duelos ao amanhecer e fugiu com o anão para não ceder aos apelos eróticos do apresentador espanhol.
A música abafada da velha clarineta inspirou farmacêuticos, padeiros e aposentados; criou filarmônicas e construiu maestros que, rapidamente, voltaram ao anonimato dois meses após a rumba fatídica que pôs fim à cíclica lona verde.
Como era gostoso aquele lenço estampado a deslizar carinhosamente sobre o ombro, vindo daquela mão doce, pequena, que convidava a bailar numa tenda de ciganos ao som de singelos violinos e terminar perdidos, enamorados, sobre um rochedo qualquer, à luz da lua, acariciando aquele corpo dengoso de dançarina dos trópicos.
Fantástico seria viajar com a moça do trapézio; morar em sua barraca e, à noite, furtivamente, olhar seu rosto de perto e enfim acreditar que aquela que ali estava era a mesma musa aérea que com um simples gesto fazia sangrar as unhas do domador.
Subir e descer ladeiras era muito fácil, ainda mais se acreditássemos poder subir nos ombros do homem com as pernas de pau e, lá do alto, mijar na cabeça do inimigo predileto.
Agora, a vida pôs-se a andar de muletas, põe seus óculos de ponta de nariz e se dedica a contar histórias de quando estreou no "galinheiro" do Circo São Jorge.

por Sérgio Araújo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pela visita!