domingo, 19 de julho de 2009

A Praça

Apresentação1










Jazia ali, cinematograficamente estendido sobre os paralelepípedos da rua. Ao seu redor, uma pequena multidão de curiosos. Eram donas de casa sujas das suas rotinas diárias e incansáveis na repreensão às traquinagens dos filhos, os feirantes estabelecidos no marcado municipal e que, na correria, traziam ainda nas mãos calosas, as mercadorias
que comercializavam no exato instante em que o fato acontecera.
Para lá acorreram também os populares, cidadãos sem rostos e de história comum. Gesticulavam enquanto davam fim a um assunto banal antes de se apresentarem ao local da tragédia.
O cego cantador levantou de sua esquina predileta, esbarrou no crente Deusdeth que atirou para longe a Bíblia Sagrada como um pássaro preto alçando voo no coqueiral.
Até o mascate abandonou às pressas a sua mala da cobra e pôs-se em marcha paralela aos dois soldados rasos e um delegado que avançavam autoritários rompendo a multidão.
O Dr. Sócrates, médico respeitado mais pelo seu caráter que pelos conhecimentos da medicina, caminhava apressado segurando a velha valise de couro preto  puída e de alças redondas.
Nessa altura, garrafas de cachaça corriam de mão em mão sobre as cabeças na praça.
Sobre a marquise da padaria acotovelando-se, um bando de edis tresloucados pela quantidade de eleitores ali presentes, exortava o povo a ouvir um improviso de oito páginas que já começava a se dissolver em palavras toscas tecendo uma peça tragicômica que só a ignorância e a rudeza da vida interiorana pode revelar.
Num instante, o círculo se fecha mais e mais, a multidão aproxima-se do corpo inerte, o murmúrio aumenta. De repente o silêncio. As cores se desmancham desaguando em sépia, a cena retida numa pequena superfície retangular rotaciona para a direita flutuando sobre um fundo escuro.

por Sérgio Araújo

3 comentários:

  1. Olá Sérgio,

    Ficção ou inspirada na realidade, a cena descrita se repete pelo Brasil afora. Na cidadezinha, na cidade grande. A vida se torna banal. E a morte revela a indiferença de quem está por perto. A leveza da narrativa impressiona. Fantástico conto!!!

    Parabéns,
    Graça

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  2. Seus contos são dos melhores.

    Serei um inquilino do seu blog.

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  3. (relendo) Agora percebi que trata-se de um roteiro perfeito da vida real!

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