terça-feira, 17 de novembro de 2009

Limite



23:59

O cabo negro e estriado serpenteava pelo piso de madeira enroscando aqui e ali nos móveis estragados pelo tempo e seguia mesa acima tão esticado que perecia poder partir-se a qualquer momento.
Sobre a mesa jazia um copo de papel, vazio, desses de aniversário, com motivos infantis: um palhaço com cabeleira colorida, serpentinas,confetes, língua-de-sogra, tudo isso com muitas cores para fingir alegria e comemoração. Adiante, refletindo a luz de uma lâmpada incandescente, como uma serpente estreita e verde, escorria lentamente o líquido derramado do copo em direção aos dedos finos e inertes de Teresa.

23:58

Um relógio despertador emoldurado por figuras de anjos barrocos cavalgava uma mesinha de cabeceira com duas gavetas entreabertas. Mais adiante, em diagonal, a sombra com gestos leves tingia a parede branca do quarto de Teresa.
Como num sonho ruim, ela acordou sufocada pela secura do ar, os cabelos molhados de suor que também escorria por todo o corpo e abriu os olhos a tempo de ver-se através do espelho da penteadeira, flutuando como a assistente do mágico no circo Eureka.
Na sonolência que ainda sentia, zonza e surpresa pela insólita situação, Teresa não sabia se flutuava pelo quarto como um astronauta ou se o quarto era uma espaçonave que lhe acolhia com gentileza e a fazia sentir-se bem na incerteza dos fatos. O certo é que agora sobrevoava a mesa da sala que ainda guardava os restos da festinha de aniversário do seu único filho.

23:57

No televisor ligado, Tom corria desesperadamente atrás de Jerry e derrapava numa esquina como um carro no asfalto molhado.

23:56

Teresa imóvel na cama, não sabia da noite e o que lhe trazia, não sonhava, não cabia no tempo estreito que agora tinha.

23:55

A porta abriu com um leve estalo. Agigantando-se pela sala vazia, a sombra com chapéu atravessou o corredor esfregando-se ora numa parede, ora na outra empurrada pelas luzes dos outros  cômodos que se alternavam ao longo do caminho. Parou em frente à porta do quarto onde Teresa dormia, empurrou-a devagar jogando uma tira de luz sobre as suas pernas brancas.

por Sérgio Araújo

Um comentário:

  1. Grande Sérgio,

    tensos e densos os limites desta crônica. Portanto, indiscutivelmente ótimos.
    Valeu, meu amigo. Mais uma vez, obrigado por seus escritos,
    Alaor Ignácio

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