segunda-feira, 1 de junho de 2009

A casa de Manuela

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Olhando do alto, ela ocupava um retângulo estreito entre duas casas maiores. Telhado de duas águas frente e fundo com muitos anos de sol e chuva, emaranhado de barandões, sacos plásticos e um kichute que só Deus sabe com foi parar ali.
A rua se alongava numa reta após uma curva leve ,cujo côncavo pertencia à vista da janela muito baixa e estreita que, quando aberta, emoldurava uma parede azul e,  no canto, à direita, a madeira torneada do braço do sofá.
Daquela casa, quase que não se podia dizer-lhe a cor. Talvez um branco levemente azulado ou um azul claro esbranquiçado com manchas cor de rosa aqui e ali, em algumas partes via-se um verde aguado denunciando as diversa pinturas por que passara através dos anos.
Chapéu–de-couro, margarida, onze horas, erva cidreira, boldo e outras tantas que se misturavam às ervas daninhas, papéis de balas e tocos de cigarros que formavam um conjunto colorido à entrada da casa, tudo isso margeando um caminho de cimento sobre a terra, rachado e enegrecido pelo tempo.
Pelas frestas, via-se o interior humilde e limpo. Do conjunto de som de duas caixas grandes com tweeters, soava forte, Me and Bob Mcgee e, de vez em quando, os sucessos do momento, mas apenas no rádio.
Na sala, um sofá coberto com uma colcha de chenile cor de abóbora, uma mesinha de madeira encostada à parede, num canto, coberta com uma toalha branca sob um vaso com flores artificiais. Na parede, um quadro com moldura ovalada  de pintura barata retratando três crianças com trajes antigos.
Um cheiro  leve de parquetina inundava o ambiente. O ar era frio, mas não úmido, refrescado pelo vento constante que, numa corrente invisível, lambia sem pudor as paredes lisas, o chão de cimento vermelho e o telhado suspenso nos caibros de madeira fina.
Manuela quase nunca estava lá. Trabalhava como professora primária num bairro distante e fazia bicos em outras atividades. Diziam que tinha uma vida obscura, para além dos muros da escola estadual. Sussurravam as fofoqueiras que Manuela  era isso e aquilo. Diziam que tinha um filho, ninguém sabe onde nem com quem. O certo ou quase certo é que o menino era criado pela mãe que morava sozinha no subúrbio.
Manuela gostava de música. Quando abria a casa e estendia os lençóis na janela, um festival dava início. As canções não tinham pátria, as línguas se misturavam como numa Babel sinfônica, quintessência do bom gosto: blues, rock, samba de Cartola, Adoniram e Batatinha; Chico Buarque, Rita Lee, Caetano, Pink Floyd , Yes, Led Zeppelin, B. B. King, Beatles, Piazola, Bessie Smith e Miles Davis.
Manuela não era bonita nem feia. Manuela era Manuela. Não gostava de ser vista nem ouvida. Dizem que era feliz à sua moda; que namorava um garoto de dezesseis para contrastar com os seus 37 e não dava bola pra ninguém.
Manuela, sua casa e sua música. Assim foram-se os anos de Manuela e dos amigos de Manuela e dos gatos malhados rondando e roçando na porta para entrar.
Certamente existe um tempo e um lugar fora dos tempos e dos lugares para onde vão as Manuelas, suas casas e suas músicas; para onde vão as as palavras iluminadas pela poesia da vida. Strawberry fields forever, Manuela!

por Sérgio Araújo

Um comentário:

  1. Grande Sérgio,

    a casa da Manuela, aliás, ela própria, me fizeram lembrar um pouco da Hilda Hilst. Idêntica nos cascos e carícias, assim como no jeitão zen-sabido-experimental. Portadora de uma sensualidade explícita e ao mesmo tempo remota. Obscena e pura!
    Enfim, uma complexa e ótima personagem transitando solta pela história e, já que você próprio citou, com uma pontinha de "Sketches of Spain", do Miles Davis...
    Um grande abraço,
    Alaor Ignácio

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