quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Oitão

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Era um caminho para o céu. Não. Não era um caminho, mas um túnel do tempo, uma passagem secreta para outra dimensão. Podia ser tudo isso se não fosse um simples oitão; estreito como deve ser um oitão que se preze. Aquele vão comprido e apertado tinha a sedução das coisas proibidas. Eu sabia que não podia entrar ali, mas queria aquilo como desejava aquela bola branca da promoção da Bombril.

Aquelas bolas brancas com a logomarca vermelha do fabricate estavam nos sonhos da molecada. A TV convencia e a gente pedia aos pais para comprar. Menos eu. Meu pai tinha um armazém e eu passava as tardes a desmanchar pacotes, escondido. Juntei cinco vales-brindes. Um cupom azul que dava direito a uma bola, trocado nas lojas Mesbla. Foi assim que eu consegui jogar em todos os bábas que se formavam depois da escola.

O campinho ficava em frente ao oitão e, volta e meia, a bola rolava em sua direção, escorregava pela pequena vala que parecia um leito seco de rio a se estender oitão adentro. E era assim nos tempos de chuva, as águas escorriam entre as paredes para desaguar no quintal de dona Miúda.

A bola teimava em correr para aquele lado. Além do claustrofóbico vão, naquele lado do campo também ficava a casa de Zé Amarelo, conhecido rasgador de bolas.

Naquele dia, a bola rolou devagar até perder-se oitão adentro. E lá estava eu, espremido entre as suas paredes. Sufocado, sangrando, em desespero, imaginando ficar preso ali para sempre, vendo as paredes comprimindo o meu corpo, o céu baixando, o chão fugindo e o ar faltando.

Foi ai que a vi, Sônia morena, parada no fim daquele túnel, aquele insuportável, longo e escuro túnel em que o oitão tinha se transformado. Não era a bola, esquecida no sufoco da situação; era a coisa mais linda que até então eu tinha visto. Como um holofote, um raio de sol iluminava a sua face e os seus cabelos que caiam displicentes sobre os ombros.

Compenetrado, como um herói dos seriados vespertinos, lancei-me para fora como que saindo do ventre materno, um parto difícil e exagerado nos movimentos para conferir valentia e superação diante do olhar enternecido da donzela.

Com o coração aos pulos, alcancei a rua, depois o campinho e nunca mais a vi. Nem a minha Sônia, nem a bola da Bombril que foi devidamente rasgada pelo implacável Zé Amarelo, tio da donzela encantada e dono do oitão das minhas desventuras.

 

por Sérgio Araújo

Crônica publicada em primeira mão, a pedido do meu amigo Wellington de Cachoeira-Ba, no blog http://letoooutroolhar.blogspot.com/

Um comentário:

  1. Grande Sérgio,

    Cada dia mais me convenço de que todo o ser humano tem um labirinto, um brinquedo fabuloso, uma enorme visão do amor e, lamentavelmente, um Zé Amarelo. Sua crônica traduz a mítica da essência humana: cuja identidade é instantânea.
    Mais uma vez, meu irmão baiano, obrigado pelos seus escritos.
    Abração, um ótimo final de semana e tenha juízo – nem que seja para perdê-lo.
    Alaor Ignácio, caipira paulista.

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