quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Capistrano e o vento

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Capistrano, filho de Eliodoro e neto de Capistrano. Esse era seu orgulho. Lá para as bandas do Oricó não havia riqueza maior que uma descendência contada e recontada pelas honras do trabalho honesto. Sua força vinha daí, do amor de Madalena e do filho Elinho.

Naquele sábado, voltando da feira, Capistrano levava os pedidos de Madalena; um doce pra Elinho e uma canseira danada. Andava para poupar Cipó que já suportava dois panacuns cheios das coisas que comprara com o dinheiro do seu comércio.

- Eia! Cipó. - num grito entrecortado por um assobio - vamo, vamo!

A estrada se alongava perdida entre os cacaueiros que a margeavam. O sol estava a pino e o jumento cipó, de vagar, marchava com os olhos fechados e a cabeça baixa.

Caminhava há duas horas e ainda faltava mais duas para chegar em casa. Era um pedaço de estrada de terra, um tanto de roça de cacau, outro de manga, o último trecho de mata e a velha casinha de taipa se mostrava em sua humildade barro e palha.

A estrada era varrida pelos ventos de agosto. O farfalhar constante era às vezes tão intenso que amedrontava. Dava a nítida impressão de que a floresta ia engolir a todos como uma bolha verde e revolta com sua boca enrugada e amarga como a casca do pau d'arco.

Capistrano ia cantarolando em pensamento as velhas canções da Vó Minervina e, vez por outra, interrompia a cantoria para relembrar os causos de pé-de-fogueira em noite de lua, com a família reunida no terreiro varrido de véspera; prato de aipim com carne e a caneca de café pilado com cravo e rapadura.

Nessa distração ia Capistrano e nem reparou quando à sua frente, um jenipapeiro fino e alto envergou profundamente sobre a estrada soltando folhas como fogos de artifício na noite de São João.

O vento roçou o corpo de Capistrano e o fez estremecer! Sentiu um frio repentino e agarrou-se à cangalha de Cipó que cambaleava com as orelhas em riste. O vento cresceu como uma muralha à sua frente e despejou os restos da mata com seus cheiros e suas migalhas sobre seu corpo lento e insignificante.

- Eia, Eia. - tentava fazer Cipó obedecer enquanto puxava-o fortemente pelo cabresto.

Cipó fincou as patas no chão de terra e não arredava. Agora eram as compras que começavam a cair quando Cipó empinava ligeiramente para se livrar da fustigação. Foram as panelas, as fazendas, açúcar, café a garrafa de Jacaré.

- Velei-me meu São Benedito! Sussurrou apavorado.

- Eia, Cipó! Vamo, vamo... - implorava como se sua vida dependesse disso.

Cipó empacou e Capistrano agarrou-se a ele como se fora sua única salvação. O vento ficou mais forte a ponto de derrubar uma árvore a poucos metros dos dois. O estrondo fez Cipó relinchar e pular sem sair do lugar e, pulando, derrubava o conteúdo dos panacuns que rolavam estrada a fora.

O horizonte tinha sumido numa polpa marrom e o que era estrada virou céu e o que era céu virou estrada, o vento soprava de baixo pra cima, Cipó com as orelhas no chão, bufava e Capistrano flutuava sobre a Cajazeira que rodopiava e se encontrava com a estrada, ou era o céu? A casa de palha, o fogo as lembranças de Madalena, Elinho na escola, minha velha Minervina, meu pai Eliodoro, São Benedito rogai por nós. Bola de sebo Capistrano na idade de Jesus não pode morrer sem criar Elinho, Cipó já vai alto, o perfume de Madalena, minha sandália, aquele toco...

Aos poucos, deu-se a calmaria! A estrada virou estrada, o céu azulou, Cipó perdido nas entranhas do horizonte e Capistrano dormindo. Descansava, a final, Sob as folhas que ainda caiam, lentamente, sobre sua cabeça recostada no velho toco do Jequitibá.

 

Por Sérgio Araújo.

Foto: Galeria de Voyageur Solitaire-mladjenovic_n -flickr

2 comentários:

  1. Sérgio amigão, como vai você?
    Tenho acompanhado também seu blog e indiquei para algumas escolas aqui da cidade que moro, as mesmas trabalham os alunos com literatura poética e linguagem textual atualizadas.

    Gostaria que escrevesse um artigo seu em meu blog, fique avontade ok?
    letoarte@gmail.com
    Abraços

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  2. Grande Sérgio,

    Cada dia mais me convenço de que todo o ser humano tem um labirinto, um brinquedo fabuloso, uma enorme visão do amor e, lamentavelmente, um Zé Amarelo. Sua crônica traduz a mítica da essência humana: cuja identidade é instantânea.
    Mais uma vez, meu irmão baiano, obrigado pelos seus escritos.
    Abração, um ótimo final de semana e tenha juízo – nem que seja para perdê-lo.
    Alaor Ignácio, caipira paulista.

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