sábado, 5 de setembro de 2009

Atrás do Trio Elétrico

castro-alves1
Desceu do ônibus no Campo da Pólvora, em pleno sábado de carnaval. O tênis novo, bermuda estampada com bolso secreto pra guardar dinheiro e documentos, camiseta regata e três doses de conhaque só pra turbinar a entrada na avenida. O Trio Elétrico dava a volta no Sulacap enquanto Reginaldo deslizava São Pedro abaixo. Ele e uma multidão de mortalhas molhadas, rasgadas, amarradas nas cinturas, arrastadas no chão lambuzado de urina, cerveja e restos de folia.
Reginaldo sonhava encontrar Soninha. Tinha marcado um lero com ela nas imediações do Clube de Engenharia. Ali rolava uma galera legal: a turma da esquerda, alguns roqueiros que não foram pro festival, pra praia ou ficaram em casa ouvindo Black Sabbath; os intelectuais que não pulavam e passavam todo o carnaval discutindo com a turma da esquerda; alguns populares (aqueles das crônicas nas edições de domingo), universitários, bichos-grilos turbinados e, é claro, muita mulher bonita (dos outros).
Aquele pedaço era o local mais quente do carnaval no início dos anos 80. Por ali passavam quase todos os trios e trecos que alegravam a galera. Reginaldo fazia a ponte: um pé na Praça e outro na barraca de Valdir para uma cerveja gelada e uma parada pra cantar as meninas e "se armar" pra mais tarde.
Naquele dia tava tudo certo. Soninha ficou de lhe esperar na mureta do Clube, em frente à barraca de Valdir e nada poderia dar errado.
Enquanto passava por São Bento, Reginaldo ouvia os acordes de Dodô e Osmar na Carlos Gomes e pensava em Soninha lhe esperando na mureta: latinha de cerveja numa mão, um cigarro na outra, os cabelos dourados na réstia do sol que morria na ilha, vermelho.
O Sulacap imponente derramava gente por todos as janelas. Pro lado da Rua Chile, as luzes acabavam de ser acesas e iluminavam restos de Gandhis, aqui e ali, como contas brancas que escapuliram dos colares dos Orixás.
Reginaldo dobrou a esquina. A multidão enchia a rua estreita como sardinha na lata. Empurra pra lá, empurra pra cá e Redginaldo entrou na onda. Não mais andava, era levado numa alegre correnteza que vez por outra se transformava num furacão onde tudo rodava, os pés quase não tocavam o chão e as mãos só tinham lugar acima das cabeças que passavam em profusão. Não eram apenas cabeças, eram braços, rostos suados, latinhas, cigarros acesos, peitos, mãos nos peitos, loló, ladrão, capacete de polícia, pisão no pé, dedo no olho, sovaco na cara e um milagre pra sair dali antes da chegada do próximo Trio Elétrico.
Quase esmagado contra a porta de ferro de uma loja de passagens aéreas, Reginaldo avistou Soninha em cima do muro do Clube de Engenharia. Não se importava mais com os pés encharcados na poça de mijo nem com o odor que exalava da mistura dos perfumes e cheiros da multidão que impregnavam seu corpo molhado de suor. Lá estava ela, linda, de shortinho azul, top colorido e uma flor no cabelo.
Soninha dançava. Não! Não era dança. Era uma coreografia, ela pairava como Francesca de Rimini sobre a multidão que imitava os movimentos de um cavalo mecânico em ritmo acelerado. Seus cabelos escorriam sobre os ombros, os olhos fixos no alto do Trio, as mãos levantadas.
Reginaldo mergulhou na multidão como se estivesse no Porto da Barra. Queimou os cabelos moldados com óleo de coco da morena dos Pernambués com o seu cigarro, atropelou o maluco que cheirava loló e nem se importou, tropeçou numa muquirana e, por um instante, pensou não poder transpor a barreira das bundas rebolantes e dos socos dos malhados. Mas lá estava Soninha e estava perto. Só mais alguns metros.
Reginaldo foi cuspido pela multidão contra uma pilastra do Cine Bahia. Atordoado, caminhou apertado contra o muro a tempo de ver Soninha em cima do Trio, sorriso amplo a caminho do Campo Grande.
Pra Reginaldo a decisão: lavar as mágoas com as cervejas de Valdir ou se deixar convencer pelo refrão que balançava o chão da Praça na voz de Caetano: "atrás do trio elétrico, só não vai quem já morreu".
 
por Sérgio Araújo

2 comentários:

  1. Então, Reginaldo dançou atrás do trio...
    Muito boa descrição, é preciso muita arte para romper os obstáculos, já passei muito por isso, não quero mais (Não sei se fiquei mais tolo ou mais inteligente, ou mais medroso), porém nunca marquei encontro com qualquer Soninha, elas estão por todo o caminho.

    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Parabens pelo blog!
    Estou enviando esse site pois acredito ser muito pertinente com o assunto
    trioeletrico.net.br

    ResponderExcluir

Obrigado pela visita!