domingo, 24 de maio de 2009

Noturno

Uma pequena chama navegava tranquila sobre o óleo transparente da lamparina. A penteadeira, além da claridade, exibia orgulhosa um vidro de Diamente Negro, um pente de tartaruga, duas borboletas de porcelana azul e um velho almanaque do Biotônico Fontoura.
Era um pequeno quarto, com cama colada à parede branca, um colchão de palha coberto com o lençol amarelado pelo uso, um urinol e as roupas de ontem penduradas num prego atrás da porta.
- É no pé da máquina - dizia orgulhosa, referindo-se ao trabalho que sustentava o casal.
Justiça seja feita, era a melhor modista da cidade. Mas, se o fato de costurar bem lhe trazia fama e freguesia boa paga, ela andava cansada, resmungando pelos cantos e nem sentia mais vontade de frequentar a casa de Dona Miúda nos domingos à tarde para um café com bolo e recordações.
Sentia-se triste e solitária entre velhos e novos amigos. Até para ele, seu primeiro amor, não mais contava os causos da infância, as aventuras no pomar do avô e tudo o mais que fazia a alegria daquela vida tosca.
Um dia, cansada de tudo, olhou para as estrelas naquela noite sem lua como se fosse pela primeira vez e soluçou, como numa ladainha, aqueles versos de criança que fizera há muito tempo numa noite como aquela.
Sozinha, recitou bem baixinho até que, lentamente, fez-se em palavras pequeninas e frágeis como nuvens de letras que agora voavam ligeiras com suas asas leves de libélula em direção à Via Láctea.
por Sérgio Araújo

Um comentário:

  1. Desconhecia o cronista, grande Sérgio, mas um velho e sabido professor de literatura, que tive no final do colégio, já dizia manso, “quem tem a verve não se perde nos gêneros”. Gostei muito da “subida” da modista, Via Láctea afora.
    Coincidência ou não, eu ouvia os Noturnos, de Chopin, quando abri o seu blog. E só pode ser coincidência, porque eu não sou um ouvinte tão assíduo assim de música erudita. Só pode ter sido os impulsos da alta costura de palavras.
    Um grande abraço e uma ótima semana,
    Alaor Ignácio

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